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As medidas legais de controle da COVID-19 e sua proporcionalidade

As medidas legais de controle da COVID-19 (isolamento, quarentena e tratamento de saúde compulsório) e sua proporcionalidade*

The legal measures of control of COVID-19 (isolation, quarantine, and compulsory health  treatment) and its proportionality

 

*Artigo publicado na A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, v. 20, n. 80 (2020), abril/junho.

 

Sobre o autor:

Nome: Luiz Antônio Freiutas de Almeida, Promotor de Justiça do Ministério Público do Mato Grosso do Sul

Principal filiação institucional: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal).

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0584-8417

 

Resumo: o presente artigo investiga algumas das medidas sanitárias previstas em lei brasileira para o controle da COVID-19 – isolamento, quarentena e tratamento de saúde compulsório –, a fim de examinar sua constitucionalidade. O texto considera-as como restrições a direitos fundamentais adotadas para a proteção do direito fundamental à saúde, especialmente na sua dimensão coletiva de saúde pública. Identificado um conflito normativo entre princípios constitucionais, usa-se a norma da proporcionalidade para estruturar a ponderação. Conclui-se que elas são proporcionais.

Palavras-chave: direitos fundamentais; ponderação; proporcionalidade; direito à saúde; restrições.

Abstract: the presente article inquires some sanitary measures provided in Brazilian statute for the control of COVID-19 – isolation, quarantine, and compulsory health treatment –, for the purpose to examine if they are unconstitutional. The text considers them as limitations to fundamental rights, which were carried out in order to protect the fundamental right to health, specially in its collective dimension of public health. Identifying a normative conflict between constitutional principles, the proportionality norm is used to structure the balancing. It concludes that these measures are proportional.

Keywords: constitutional rights; balancing; proportionality; right to health; limitations.

Sumário: 1. Introdução. 2. As restrições aos direitos fundamentais. 3. As medidas de prevenção e enfrentamento dispostas na Lei n. 13.979/20. 4. Medidas adotadas por outros entes federados e a Lei n. 13.979/20. 5. O exame de constitucionalidade das medidas de isolamento, quarentena e submissão a tratamento e exame médicos e testes laboratoriais. 6. Conclusões. 7. Referências bibliográficas.



1. Introdução

Os desafios impostos pela pandemia de COVID-19, doença de origem viral causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), são imensos e os efeitos impactam o mundo. Conforme informação da Organização Mundial de Saúde (OMS), ente que reconheceu a situação pandêmica em 11 de março de 2020, em 23 de março de 2020 o número de infectados alcançou a cifra de 294.110 pessoas em 147 países, com 12.944 óbitos[1].

Uma série de medidas foram adotadas nos países atingidos[2]. No Brasil, algumas medidas de ordem normativa foram adotadas como reação e prevenção ao surto pandêmico. Houve o reconhecimento de estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo n. 6/20) e por alguns Estados e Municípios[3]. Após o enquadramento pela OMS da enfermidade ventilada como emergência de saúde pública de preocupação internacional, ainda em janeiro de 2020, houve a edição do Decreto n. 10.212/20, que promulga o regulamento sanitário internacional aprovado na 58ª Assembleia Geral da OMS, e a aprovação da Lei Federal n. 13.979/20. Esses diplomas internalizam medidas de prevenção de disseminação de enfermidades contagiosas, como a quarentena e o isolamento.

De qualquer sorte, é visível um descompasso entre aquilo preconizado por alguns Municípios e Estados com a linha de atuação da União[4]. Nesse desacordo sobre como agir, é fato que a curva de contágio no Brasil segue em ritmo alarmante, praticamente no mesmo padrão de países europeus mais afetados com a doença[5].

O presente texto tem o objetivo de examinar, principalmente, a quarentena, o isolamento e a realização obrigatória de exames e tratamentos médicos e coletas laboratoriais sob o filtro constitucional, a fim de verificar se são restrições proporcionais aos direitos fundamentais. O artigo é construído pelo método dedutivo e técnico-jurídico, com pesquisa bibliográfica, às fontes do Direito e a artigos da mídia que tragam informações técnicas sobre a doença, porém não é interdisciplinar e não pretende, por suposto, discutir o mérito sanitário dessa ou daquela medida. As decisões judiciais mencionadas que não foram objeto de consulta nos endereços dos sítios eletrônicos dos tribunais respectivos terão a indicação de onde podem ser acessadas.

2. As restrições aos direitos fundamentais

As restrições aos direitos fundamentais não ocorrem somente na vigência do Estado de Defesa[6] e do Estado de Sítio[7]. Em realidade, a deflagração do “sistema constitucional de crises”[8] permite maior elastério às restrições que poderiam ser construídas pelo Legislativo em tempos ordinários da vivência social e política; importam, por consequência, em um menor ônus de fundamentação por parte do Estado e numa menor intensidade de controle judicial em relação às medidas adotadas durante sua vigência. Afinal, a arte legislativa de restringir direitos fundamentais é uma necessidade constante, de forma a compatibilizar harmoniosamente a promoção de diferentes direitos, princípios e interesses coletivos.

Sem embargo, é preciso reconhecer que, na teoria geral dos direitos fundamentais, há uma celeuma sobre a definição do âmbito de proteção ou conteúdo de um direito fundamental, bem como sobre os eventuais limites/restrições a ele impostos. Não é o espaço para o aprofundamento entre os vários posicionamentos teóricos que sustentam uma ou outra corrente, razão pela qual serão dadas pinceladas mais gerais sobre o debate.

No delineamento do âmbito de proteção, isto é, na definição sobre aquilo que a norma de direito fundamental confere ao titular, há juristas que defendem que seus contornos sejam feitos por um suporte fático restrito. Assim, excluem-se posições, ações ou situações do conteúdo do direito pela hermenêutica ou pelo emprego de algum método de interpretação, conforme perspectiva subjetiva e valorativa do intérprete. Antagonizam-se com eles os doutrinadores que advogam a tese do suporte fático amplo, em que todos os possíveis campos de ação, posição ou situação que possam ser extraídas pela interpretação semântica ampla do enunciado normativo de direito fundamental são considerados protegidos prima facie pela norma de direito fundamental[9].

Intimamente ligada a esse debate está a divisão entre as teorias interna dos limites e externa das restrições. Para os sectários da teoria interna, o direito fundamental não sofre restrições externas, geradas por outras normas; antes disso, os limites do direito são dados internamente ou de forma imanente pela própria norma que o assegura, os quais são apreensíveis pela correta forma de interpretar seu conteúdo. O máximo que se poderia admitir é a configuração/regulação do direito, isto é, a edição de atos normativos para regulamentar o tempo e o modo de exercício desse direito; por consequência, a tendência é rejeitar a ideia de conflitos normativos entre normas de direitos fundamentais, o que faz alguns de seus adeptos visualizarem os direitos fundamentais mais como regras do que princípios. Os filiados à teoria externa, por sua vez, sustentam a tese de que o conteúdo do direito fundamental é, normalmente, positivado por um princípio jurídico, que pode ser restringido por outros princípios constitucionais e normas que com ele colidam. Portanto, haveria duas coisas distintas, entre as quais não haveria nenhuma relação lógica necessária, mas uma relação que é externamente criada pela imperiosidade de conciliar diversos princípios, direitos fundamentais e interesses coletivos: o direito em si e a sua restrição. Assim, essa necessidade de harmonização justificaria que o Legislativo, ao ponderar a forma de conciliar esses diferentes princípios, aprovasse leis que afetassem negativamente o conteúdo do direito prima facie protegido pela norma constitucional[10].

As liças teóricas que norteiam o debate sobre a definição do suporte fático e a existência de restrições ou meramente limites possuem conexão, pois é comum que os adeptos da teoria interna defendam a definição de um suporte fático restrito e que os filiados à teoria externa apregoem a correção de um suporte fático amplo, embora não seja teoricamente incoerente a um adepto da teoria do suporte fático restrito defender a teoria externa das restrições[11].

Neste vértice, convém assinalar que, como é curial, há problemas na assunção de uma ou outra teoria. Os adeptos da teoria interna/suporte fático restrito conseguem, por um lado, evitar o constante recurso à ponderação e à jurisdição constitucional, o que é mais propiciado em consequência da assunção da teoria externa/suporte fático amplo. Isso se torna mais evidente nas situações em que se prenuncia, com boa margem de segurança, qual seria o resultado da ponderação: o exemplo mais argumentado na doutrina é o de refutar, como âmbito protegido do direito à liberdade de crença, a possibilidade de sacrifícios de crianças. Como sustentar que eventual legislação que proibisse a imolação infantil possa ser uma restrição à liberdade de crença? Para tanto, esse comportamento deveria estar protegido prima facie por essa liberdade, o que não é muito sedutor, tanto mais porque, com razoável margem de certeza, a ponderação terminaria por fazer prevalecer o direito à vida do infante[12].

No entanto, há claras desvantagens e problemas teóricos que debilitam a teoria interna e a maioria das teorias de suporte fático restrito. Ora, é logicamente problemático assumir que determinada norma tenha, desde sempre e pela simples forma de interpretar, todos os limites corretamente apreensíveis pelo intérprete, sobretudo pela possibilidade de mudanças sociais, políticas e econômicas que podem impactar determinada comunidade. Ainda mais censurável é o alívio da carga de fundamentação sob responsabilidade do intérprete. Afinal, ao simplesmente glosar determinada posição, faculdade ou situação jurídica do âmbito protegido pelo direito fundamental, fundamentando simplesmente que chegou a essa inferência por meio de interpretação, o aplicador deixa de explicitar todos os passos argumentativos, valorativos e ponderativos empregados, blindando-o, dessa forma, de um maior controle jurídico e político-social de suas decisões[13]. E é justamente nos casos duvidosos em que isso se torna mais perigoso para os direitos fundamentais, pois é uma postura que os protege menos pelo menor ônus de fundamentação: afinal, é possível que a mera regulação do exercício do direito possa implicar, na prática, uma disfarçada restrição ao conteúdo do direito[14].

Uma teoria intermediária, que não é imune de problemas, mas que é mais coerente com a necessidade de maior ônus de fundamentação para as restrições de direitos fundamentais, sem prejuízo de diminuir a constante remessa das questões à jurisdição constitucional, é a proposta por Reis Novais, que sustenta uma teoria externa das restrições, porém uma teoria do suporte fático mais restrito que a proposta por Alexy. Em princípio, o suporte fático é interpretado de modo amplo, no entanto, se determinada faculdade, posição ou situação for, diante de um critério de evidência e consenso razoável, eliminável do âmbito protegido do direito fundamental, ela é excluída do conteúdo do direito à partida, de sorte a não provocar um conflito normativo; na dúvida, considera-se que a posição ou ação está compreendida prima facie no âmbito protegido do direito. O presente artigo comunga do pensamento de Reis Novais em relação às teorias do suporte fático e externa das restrições e é o referencial teórico que norteará o texto[15].

No Brasil, não houve a previsão de uma cláusula geral de restrições, o que talvez explique a pouca importância dada por parcela da doutrina nacional aos temas das restrições não expressamente autorizadas pela Constituição e da reserva legal. Seja como for, há norma constitucional que prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo se não houver lei. Por isso, depreende-se que há uma cláusula de reserva legal subsidiária para restringir o conteúdo prima facie protegido dos direitos fundamentais[16]. Isso permite que a problemática das restrições ingresse justamente no exame da constitucionalidade da medida imposta pelo diploma legal. Com efeito, a jurisdição constitucional pode invalidar leis que restrinjam excessivamente os direitos fundamentais, bem como censurar omissões que os deixe sem uma tutela suficiente, o que é feito com o emprego da norma da proporcionalidade[17]. Este artigo agora se volta para examinar as medidas previstas na Lei n. 13.979/2020.

3. As medidas de prevenção e enfrentamento dispostas na Lei n. 13.979/20

A Lei n. 13.979/2020 traz o rol de medidas passíveis de serem aplicadas para minorar o contágio da COVID-19 no art. 3º[18]. A Lei em questão é uma lei excepcional, pois sua eficácia é temporária e condicionada à existência do estado de emergência de saúde internacional, salvo no que tange ao que dispõe o art. 4-H da Lei e à prorrogação dos contratos administrativos celebrados sob sua regência (art. 8º).

As medidas são arroladas em rol aberto e exemplificativo, como se depreende da leitura do caput do art. 3º[19]. A Lei n. 13.979/2020 também traz a competência para a aplicação das medidas. Segundo a Lei, o Ministério da Saúde tem competência para adotar todas as medidas enumeradas. De outro lado, os Secretários Estaduais (e do Distrito Federal) e Municipais de Saúde, se autorizados pelo Ministério da Saúde, poderão adotar o isolamento, a quarentena, a exumação, a necropsia, a cremação e o manejo de cadáver, a restrição de entrada e saída do país e de locomoção interestadual e intermunicipal – neste caso também há dependência do ato conjunto dos Ministérios da Saúde, Justiça e Segurança Pública e Infraestrutura e recomendação técnica da ANVISA –  e a autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sem registro na ANVISA, ao passo que, para as demais, não seria necessária nenhuma autorização do gestor federal.

A Lei n. 13.979/20 traz os conceitos de quarentena e isolamento no art. 2º, I e II. O isolamento é a separação de pessoas enfermas ou infectadas, ou de bagagens, mercadorias ou encomendas postais ou meios de transporte, com o escopo de evitar a propagação do coronavírus. A quarentena, por sua vez, é a restrição de atividades ou a segregação de pessoas com suspeita de contaminação daquelas sadias, ou o aparte de bagagens, animais, contêineres, mercadorias ou meios de transporte suspeitos de contaminação, com a mesma finalidade do isolamento. Comparadas as definições dadas na lei com as do regulamento sanitário internacional, nota-se que não há diferenças semânticas significativas, à exceção de que o regulamento não se restringe ao coronavírus.

Em relação a isolamento e quarentena, a Portaria do Gabinete do Ministro da Saúde n. 356/2020 terminou por autorizar o seu emprego pelos gestores locais de saúde. Essa Portaria pormenoriza os conceitos acima delineados, definindo que eles devem ser compatíveis com os protocolos clínicos para a COVID-19 e as diretrizes do Plano Nacional de Contingência Nacional para Infecção Humana para o Novo Coronavírus (art. 10), ao passo que a Portaria Interministerial n. 5/2020 dispõe sobre a responsabilização pelo desrespeito a essas medidas.

Nos termos da Portaria n. 356/2020, que tratou da segregação de pessoas, o isolamento somente pode ser determinado por prescrição médica ou por recomendação de agente de vigilância epidemiológica (art. 3º) pelo período de quatorze dias, prorrogável uma única vez por igual período (art. 3º, §1º) se houver resultado laboratorial que comprove risco de transmissão da moléstia. A medida, quando prescrita por médico, deve ser cumprida preferencialmente em domicílio, podendo ainda ser realizada em hospitais públicos ou privados, conforme orientação médica e estado clínico do paciente (art. 3º, §2º); no caso de o isolamento ter sido recomendado por agente de vigilância epidemiológica, a medida cumpre-se em domicílio (art. 3º, §).

Sobre a quarentena, a Portaria n. 356/2020 estipula que ela depende de ato administrativo formal e motivado do Secretário de Saúde do Município, do Distrito Federal ou  do Estado ou do Ministro da Saúde (ou dos superiores hierárquicos em cada nível de gestão), com ampla divulgação dos meios de comunicação, e que o seu objetivo é garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado (art. 4º, caput e §1º). A quarentena vigora por quarenta dias, com possibilidade de extensão enquanto perdurar a necessidade de reduzir a transmissão comunitária e garantir a continuidade dos serviços (art. 4º, §2º), mas a dilação desse prazo depende de prévia avaliação do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública, previsto na Portaria n. 188/2020 do Gabinete do Ministro da Saúde. Diferentemente do que ocorre com o isolamento, a quarentena cessa, independentemente do prazo estipulado, após o encerramento da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (art. 4º, §4º).

Há alguns aspectos que precisam ser esmiuçados. O primeiro deles é averiguar se o isolamento por recomendação do agente de vigilância epidemiológica é legalmente permitido. Afinal, ao passo que o isolamento por prescrição médica demanda que o isolado esteja contaminado com o vírus (art. 3º, §§ 2º e 3º, Portaria n. 356/2020), o isolamento por recomendação pode ocorrer no curso de investigação epidemiológica[20] e alcançar alguém cuja confirmação da doença ainda não ocorreu e que pode até estar sadio, mas que teve contato próximo com os enfermos (art. 3º, §5º, Portaria n. 356/2020), o que fica evidente em casos de familiares que coabitam com eles. O problema justificar-se-ia porque o conceito legal de isolamento dado na Lei n. 13.979/20 não engloba pessoas sem comprovação de infecção.

A rigor, entende-se que houve imprecisão terminológica na Portaria n. 356/2020. O isolamento por recomendação de agente de vigilância epidemiológica é, em realidade, uma modalidade de quarentena. Afinal, por meio do conceito legal de quarentena e isolamento da Lei n. 13.979/20, já se percebe que os destinatários da quarentena são as pessoas sob suspeita de contágio, ou seja, pessoas em relação às quais não se tem certeza da contaminação. As pessoas que venham a ser postas em quarentena podem até estar sadias e não infectadas, porém se justifica que tenham suas atividades restringidas ou que elas sejam separadas das demais em função do risco de que tenham contraído eventualmente a enfermidade e possam inadvertidamente a transmitir a terceiros, seja, por exemplo, por ser uma pessoa de próximo contato a alguém enfermo de uma moléstia transmissível, seja por ter viajado e regressado de um lugar que padece de doença contagiosa. O isolamento, por sua vez, dirige-se aos enfermos diagnosticados, em relação aos quais há convicção do contágio. Tecnicamente, o tempo necessário de quarentena pode, conforme a doença em causa, variar e deveria perdurar pelo período máximo de incubação da doença, contado a partir da data do último contato da pessoa posta em quarentena com um caso clínico confirmado ou da data em que aquela deixou o local que seja fonte da infecção[21].

Destarte, nota-se claramente que há, especialmente em relação às medidas de vigilância epidemiológica e de controle de doenças, um espaço de sobreposição do direito à saúde com o direito ao meio ambiente, o que é justificável até por força da íntima relação do entorno com a saúde das pessoas. Assim, o isolamento comporta uma aproximação com o princípio da prevenção, o qual se aplica diante de certezas científicas, ao passo que a quarentena tem algum contorno de princípio da precaução, porque não há a certeza da contaminação, muito embora, a rigor, haja segurança científica a respeito do risco de transmissão caso se confirme o contágio[22].

Se essa impressão estiver correta, é possível esquadrinhar duas formas ou modalidades de quarentena: a) aquela oriunda de recomendação do agente de vigilância, de validade de quatorze dias, admitida uma única prorrogação, denominada incorretamente de isolamento na Portaria n. 356/2020. Para os fins deste artigo, essa modalidade será denominada doravante de quarentena individual ou de risco determinado. Em razão do risco patente e concreto de contaminação, ela só cessa com o fim do prazo, ainda que eventualmente antes tenha ocorrido a revogação da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional; b) e a que se extingue automaticamente com a revogação da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, de prazo inicial de quarenta dias, prorrogável quantas vezes for necessário, em razão da imperiosidade de manter os serviços e ações de saúde em operação, decretada pelos gestores de saúde nas respectivas esferas de competência (art. 4º).

Nesse ponto, nota-se que a Portaria n. 356/2020 não esclarece muito bem o que é exatamente a segunda modalidade de quarentena. Não explica onde será a medida cumprida (domiciliarmente ou em outro local destinado a isso) nem discrimina o universo subjetivo impactado pelos seus efeitos, o que é deveras tormentoso e pode suscitar dúvidas sobre sua aplicabilidade e suas consequências.

Uma primeira interpretação é de que, ao contrário do que ocorre com a quarentena de risco determinado, essa segunda modalidade seria uma quarentena de risco difuso ou de regime geral (o que tem sido chamado de lockdown), isto é, ela pode englobar pessoas que não tiveram contato próximo com enfermos nem tenham viajado para áreas atingidas, mas que, em razão da rápida propagação da doença, poderão vir a ser contaminadas em horizonte de curto ou médio prazo, num quadro em que já há a transmissão comunitária da moléstia, de forma a sobrecarregar o sistema de saúde e inviabilizar a prestação dos serviços sanitários de modo satisfatório. O exemplo italiano, cotidianamente noticiado, mostra como a COVID – 19, algumas semanas depois do primeiro doente diagnosticado, alcançou em progressão geométrica inúmeras pessoas de uma só vez, a ponto de colapsar o sistema de saúde e trazer consequências drásticas para aquele país como um todo. O contingente de pessoas submetidas à quarentena de risco difuso poderia ser definido de modo universal ou limitado a grupos considerados de risco[23].

Nesse tocante, a quarentena de regime geral ou de risco difuso distinguir-se-ia do distanciamento social justamente porque aquela é medida cogente, cujo descumprimento acarreta responsabilização. Com efeito, como forma de diminuir a curva de contaminação e a sobrecarga do sistema de saúde, há forte incentivo do governo de alguns entes federados para que as pessoas fiquem em casa e não mantenham contato com indivíduos fora de seu núcleo residencial, estratégia que vem sendo chamada de distanciamento social. Porém, o distanciamento é uma mera recomendação e não incide o agente que a descumprir em responsabilização. Com uma quarentena de regime geral, porém, a segregação das pessoas passaria a ser obrigatória, seja em domicílio ou em outro local indicado pelo gestor de saúde.

Nessa linha de interpretação, o art. 4º da Portaria n. 356/2020 exige que a quarentena em questão alcance local certo e determinado. Poder-se-ia questionar se seria possível a instituição dessa modalidade de quarentena em todo o território gerido pelo gestor que a decretar. Ora, em função daquilo que esse texto normativo dispõe, existe essa possibilidade, pois, conquanto se possa alcançar todo o território de um ente federado, não se deixa de atender o requisito normativo de ser um local certo e determinado.

Sem embargo, uma segunda interpretação é possível, menos drástica que a primeira: essa segunda modalidade de quarentena não seria de regime geral, pois não alcançaria pessoas sem suspeitas concretas de contaminação. Ela se diferenciaria da primeira modalidade, tão somente, em razão dos requisitos para a sua decretação (dependeria de ato formal do gestor de saúde), do prazo e da possibilidade de que o responsável pela medida indique o local a ser cumprida, seja em domicílio, seja em instituição de saúde ou outro local devidamente preparado para isso. Obviamente, o ato deveria enumerar as pessoas alcançadas com a medida ou, ao menos, permitir a sua identificação.

Consoante exposto, não fica muito clara essa segunda modalidade de quarentena, porém, diante da ênfase no objetivo de preservar o sistema de saúde, aparentemente a Portaria quis instituir uma quarentena de regime geral, ou seja, a pretensão é de uma quarentena que atinja pessoas sem uma suspeita concreta de contaminação. A validade dessa interpretação será retomada em outro tópico.

Outro aspecto a envolver a quarentena, o isolamento e outras medidas previstas na Lei n. 13.979/20 diz respeito à coercibilidade e à responsabilização, em caso de não acatamento.

Com efeito, pelo teor da Portaria n. 356/2020, o isolamento por prescrição médica demandaria o termo de livre consentimento do paciente (art. 3º, §4º). De outro lado, a quarentena individual ou de risco determinado, denominada na referida Portaria de isolamento por recomendação de agente de vigilância epidemiológica, exigiria uma notificação prévia da pessoa com risco (art. 3º, §7º). Aqui, uma aparente incongruência: a Portaria n. 356/20, ao determinar que a prescrição seja acompanhada de um termo de consentimento livre e esclarecido, não elucida quais medidas coativas poderiam ser impostas caso o paciente infectado recusasse a enclausurar-se. Portanto, poder-se-ia questionar se o isolamento seria uma mera recomendação médica, despida de força jurídica autoexecutável. Afinal, uma das facetas negativas do direito à saúde, que se interseciona com o próprio direito à integridade física e psíquica e também com o direito à liberdade, consiste na faculdade individual de recusar tratamentos médicos, ainda que mais beneficentes para sua saúde. A assumir esta premissa como correta, não seria lógico crer que a quarentena de risco determinado, aplicada para pessoa com suspeita de contágio, tivesse maior força jurídica, isto é, fosse uma notificação cogente. Uma saída para evitar esse impasse seria interpretar que a recusa em subscrever o termo de consentimento geraria a própria notificação prévia, a fim de equacionar as duas medidas e não as despir de eficácia jurídica.

De qualquer forma, a incongruência aqui notada foi superada. A rigor, a própria Lei n. 13.979/2020, conquanto não definisse as sanções, era clara em apontar que o não acatamento das medidas de prevenção geraria a responsabilização, remetendo para a legislação. Nesse compasso, a Portaria Interministerial n. 5/2020, que englobou os Ministérios da Saúde e da Justiça e Segurança Pública, explicita que tanto o isolamento como a quarentena são medidas compulsórias e não meramente recomendatórias, que impõem obrigações para seus destinatários. Logo, o seu descumprimento gera responsabilização nas esferas criminal[24], cível[25] e administrativa[26] (art. 3º da Portaria Interministerial n. 5/2020). Por certo, nem as sanções nem a responsabilidade são criadas pela Portaria Interministerial, porquanto já há leis que as preveem.

4. Medidas adotadas por outros entes federados e a Lei n. 13.979/20

Consoante tratado alhures, há uma dissintonia entre a política da União e de alguns entes federados na intensidade de ações para desacelerar o número de contaminados[27]. A reação do governo federal não tardou: houve a edição de duas medidas provisórias, n. 926 e n. 927, ambas de 2020. A reação é perceptível especialmente pela primeira, pois agora a lei dispõe que as ações de controle devem resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, conforme definição dada nos Decretos n. 10.282/20, n. 10.288/2020 e n. 10.292/2020. Outrossim, se as medidas de quarentena, isolamento e restrição de portos, rodovias e aeroportos afetarem serviços públicos e atividades essenciais, dependerão de ato específico e em articulação prévia com o órgão regulador ou o poder concedente. Finalmente, fica vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais e de cargas que possa gerar desabastecimento de gêneros necessários à população (art. 3º, §11).

Do ponto de vista jurídico, sem entrar no mérito de quem tem razão quanto à necessidade ou não de medidas sanitárias mais severas para conter a epidemia, é fato que a Constituição Federal estabelece a competência concorrente entre os entes federados para legislar sobre a defesa da saúde (art. 24, XII), de sorte que, havendo lei de normas gerais, como é caso da Lei n. 13.979/20, não pode o ente federado legislar de modo contrário (art. 24, §§ 1º e 4º). Por conseguinte, não se poderia determinar a suspensão de serviços considerados essenciais, tais como o de transporte intermunicipal e interestadual de passageiros, expressamente enumerado no Decreto n. 10.282/20, ou adotar ações que gerem esse resultado. Ao revés, se antes poderia haver alguma dúvida a respeito do fechamento temporário de empreendimentos, serviços e estabelecimentos comerciais não essenciais, ela é extinta com essa Medida Provisória; antes do seu advento, ela seria defensável pela interpretação de que o rol de medidas necessárias para conter a pandemia é aberto[28].

Outrossim, há serviços que são classificados de essenciais por outros atos normativos, como é o caso do serviço de transporte coletivo urbano, tratado como serviço essencial pela Constituição Federal no art. 30, V. Isso gera o inevitável questionamento: o rol de serviços e atividades essenciais é taxativo ou disposto em numerus apertus? O §1º do art. 3º do Decreto n. 10.282/20 traz a resposta: as atividades e serviços estão enumerados em rol aberto, porquanto são essenciais os que sejam indispensáveis à satisfação de necessidades não postergáveis da população, ou seja, em relação aos quais a ausência de prestação coloca em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população[29].

Não obstante, mesmo que o rol seja aberto, a norma apresenta um critério bastante elevado para classificar outros serviços e atividades como essenciais. De qualquer forma, o serviço de transporte urbano coletivo é constitucionalmente declarado como essencial e, destarte, não pode ser totalmente interrompido.

Pelo que se dessume e até para que as medidas de controle possam ter maior eficácia, não se pode interpretar a Lei n. 13.979/20 como uma barreira para qualquer tipo de alteração da rotina na forma como esses serviços são prestados. Em realidade, a norma determina que se preserve a oferta dos serviços essenciais, logo eles não podem ser suspensos integralmente. Porém, um decréscimo de sua oferta é justificável, com a possibilidade de estabelecimento de funcionamento em horários específicos ou de outras medidas que evitem o contato físico ou a aproximação ou a aglomeração de pessoas, a exemplo do teletrabalho e atendimento remoto ou virtual. Nesse contexto, inequivocamente há um desafio de logística no caso do transporte coletivo urbano: ofertá-lo diminuindo o número de assentos disponíveis ou em menor fluxo de horário pouco resultado surtiria, porque geraria a aglomeração de pessoas, tudo contrário ao que precisa ser feito para diminuir o risco de contágio. Em conclusão, no caso do transporte coletivo urbano, é viável uma suspensão desde que se possibilite uma alternativa que contemple satisfatoriamente o atendimento da população em emergências e necessidades inadiáveis, inclusive o acesso a atividades e serviços essenciais.

O raciocínio empregado neste tópico limitou-se a examinar a compatibilidade de algumas medidas adotadas pelos entes federados pelo critério da legalidade, ou seja, se haveria violação de algum dispositivo da Lei n. 13.979/2020. O próximo item abordará a constitucionalidade das medidas previstas nesse diploma legal.

5. O exame de constitucionalidade das medidas de isolamento, quarentena e submissão a tratamento e exames médicos e testes laboratoriais

A imposição de medidas sanitárias contra a vontade das pessoas não é algo novidadeiro[30]. Tal qual já argumentado, é possível que o Legislativo, para conciliar diferentes direitos e interesses coletivos, faça restrições a direitos fundamentais positivados como princípios jurídicos, cujo conteúdo é prima facie apreendido por interpretação. A mediação da tensão entre os diferentes princípios é feita pela norma da proporcionalidade, a qual se dirige ao Legislativo nessa tarefa de restrição, mas também é parâmetro de controle judicial, o qual examina o conflito normativo instaurado e, eventualmente, pode invalidar a norma restritiva[31].

Deve-se descortinar que o direito à saúde possui uma dimensão positiva e uma negativa[32]. Em relação à primeira dimensão, exigem-se do Estado ações para proteger e promover o direito à saúde, ao passo que a dimensão negativa contenta-se com abstenções estatais. Logo, esgotada a via da interpretação, identifica-se um conflito normativo entre princípios constitucionais: de um lado, o direito à saúde, na perspectiva social e coletiva de prevenção e proteção da saúde pública, e até o direito à vida, na sua dimensão positiva (em razão da necessidade de ações estatais para prevenir mortes), e, de outro, o direito à liberdade e ao livre desenvolvimento da personalidade do destinatário da medida sanitária de controle aplicada. No caso de tratamentos médicos obrigatórios, acrescenta-se mais um direito em confronto com o direito à saúde na perspectiva coletiva: o direito à saúde na sua faceta negativa, o qual também se interseciona com o direito à integridade física e psíquica, consistente na faculdade prima facie de recusar-se a ser tratado[33]. Outrossim, o próprio direito ao trabalho e à vida podem ser ameaçados no caso de uma quarentena geral engendrada de modo a impedir o labor e, consequentemente, a subsistência de pessoas que não possuam reservas ou poupança para ultrapassar o período de paralisação.

O primeiro passo, antes de iniciar a aplicação da norma da proporcionalidade, é avaliar o ônus de argumentação e de prova e a intensidade de controle judicial. Nessa etapa, inúmeros fatores históricos, sociais, políticos, econômicos e jurídicos são decisivos para avaliar o grau de intensidade do controle judicial[34]. Se, por um lado, os direitos afetados pelas medidas legais – o direito à liberdade e o direito à integridade física e à saúde na dimensão negativa – são de elevada importância, o que inclinaria a justificação para um controle mais intenso, é fato que há um cenário de crise à vista, que não pode ser desconsiderado. Ainda que não tenha sido decretado o Estado de Sítio ou de Defesa, há ameaça iminente à vida e à saúde de milhares de pessoas; certamente, não se está diante de um contexto de normalidade, o que tende a conferir uma menor intensidade de controle judicial ou um menor ônus de justificação estatal[35].

Entrementes, os nefastos efeitos produzidos pela pandemia, mormente o número alarmante de mortos em pouquíssimo tempo, a facilidade do contágio, as consequências provocadas no sistema de saúde e na economia global, aliados ao alto grau de consenso científico sobre a forma de transmissão da moléstia – que ocorre também pelo ar, inclusive por pessoas assintomáticas – e sobre a eficácia sanitária das medidas orientadas para a desaceleração da curva de progressão de contágio – o que é salutar para evitar o colapso do sistema de saúde –, tudo isso confere uma alta margem de ação epistêmica empírica, porque há confiabilidade nas premissas fáticas que justificam a intervenção estatal. Essas razões motivam a defesa de um controle mais enfraquecido de proporcionalidade pela jurisdição constitucional.

Definido o nível da intensidade de controle, avança-se para a aplicação da norma da proporcionalidade. O teste de proporcionalidade, na vertente da proibição do excesso, pode ser subdivido em quatro etapas analíticas: i) legitimidade do fim e do meio; ii) idoneidade do meio; iii) necessidade do meio; iv) proporcionalidade em sentido estrito[36].

Há uma razão precípua para o isolamento, a quarentena e a submissão a tratamentos e exames médicos e testes laboratoriais: a par de evitar o contágio de inúmeras outras pessoas com quem possam travar contato, essas medidas, especialmente a quarentena e o isolamento, podem ser fundamentais para o êxito de uma investigação epidemiológica de campo, mormente se for possível encontrar o “paciente zero” da enfermidade, o que permite um relatório de investigação mais conclusivo e com maiores dados de informação e conhecimento sobre a doença e, por consequência, a sugestão mais precisa das medidas de prevenção e controle das enfermidades e agravos da saúde que justificaram a investigação[37]. Por essa razão, entende-se que os fins (defesa do direito à saúde no seu aspecto coletivo) estatais e os meios são legítimos, até porque não estão proibidos por nenhuma norma constitucional.

Em relação ao exame de idoneidade, perquire-se se a finalidade estatal é promovida minimamente pelo meio concebido pelo Legislativo. Com efeito, diante do grau de consenso de que essas medidas são eficazes, essa etapa também está satisfeita.

Tangente ao exame de necessidade, perscruta-se se não existem meios alternativos menos agressivos ao direito fundamental restringido e que promovam o escopo estatal no mesmo patamar. Seguramente, é possível cogitar alternativas, como a hipótese de esboçar as mesmas medidas não como compulsórias, mas como recomendadas e até recompensadas por isenções fiscais ou premiações. Ou seja, caso o destinatário as cumpra, poderia receber benefícios das mais variadas naturezas. Em que pese reconhecer que seriam medidas menos compressoras do âmbito de proteção do direito fundamental restringido, fatalmente elas não seriam aptas a promover o fim na mesma intensidade, haja vista que, como algumas dessas medidas são severas (quarentena, por exemplo), é possível que elas sejam menos respeitadas por pessoas de alto poder aquisitivo. Outrossim, por envolver maiores gastos públicos e desfalcar o erário para outras prestações, essa medida termina por impactar outros direitos fundamentais, o que justifica a conclusão de que esses meios são necessários[38].

Relativamente ao exame da proporcionalidade em sentido estrito, a derradeira etapa do teste e na qual há um juízo ponderativo[39], a fim de construir uma regra de precedência entre dois princípios em confronto no caso concreto, com anseio de replicação para conflitos semelhantes no futuro, ilaciona-se que os meios legais são proporcionais em sentido estrito.

Em jogo estão direitos fundamentais de alta importância axiológica, de modo que o peso abstrato cancela-se. Note-se, porém, que é preciso especificar o que concretamente está em jogo. Deveras, não se trata de sopesar a saúde coletiva em detrimento da liberdade e integridade física individual, pois sem qualquer especificação das posições jurídicas em confronto dificilmente a pretensão individual prevaleceria, o que apequenaria proteção pretendida com a norma de direito fundamental[40]. De um lado, é a pretensão de não ser forçado a ser tratado ou segregado provisoriamente pelo período de tempo previsto versus a exigência de ações (as respectivas medidas examinadas) para proteger a saúde coletiva.

Ora, mesmo com a especificação, nota-se que há maior força argumentativa para as razões que apoiam essas medidas estatais, razão pela qual elas são proporcionais. É caso de avaliar a “lei material da ponderação”: afetações severas do direito fundamental exigem uma promoção de um fim estatal de grande importância e em grande escala[41]. Nesse ponto, os exemplos coreano e chinês, escorados na literatura médica e cuja replicação é recomendada pela OMS, concentraram-se na necessidade de segregar as pessoas doentes e as suspeitas de contaminação e até aquelas sem suspeita mediante a recomendação de distanciamento social, com realização de inúmeros testes e aprofundada investigação epidemiológica, além de encerramento de vários empreendimentos comerciais. Logo, a lei material da ponderação é satisfeita na hipótese.

Resta, porém, examinar em mais detalhe a segunda modalidade de quarentena. Se ela for compreendida de modo a apenas atingir os que tenham regressado de viagem para lugares alcançados pela pandemia ou os contatos próximos de pessoas contaminadas, vale a argumentação já escandida. Porém, e se vingar a primeira linha de interpretação apresentada, ou seja, e se pretender o gestor de saúde instituir uma quarentena de risco difuso e alcance universal?

Com efeito, pela definição legal de quarentena, que segue o regulamento sanitário internacional, compreende-se que a medida destina-se a pessoas com suspeita de infecção e não visa a pessoas sadias ou em relação às quais não haja uma suspeita concreta de que possam ter sido contaminadas. Assim, a não ser por uma interpretação mais extensiva da medida restritiva, o que normalmente não é recomendado pela hermenêutica tradicional[42], a quarentena de regime geral seria inválida a princípio. Sem embargo, essa orientação hermenêutica não deve prevalecer nesta hipótese por algumas razões: i) como as medidas de controle enumeradas pela Lei n. 13.979/20 não são numerus clausus, seria possível que outras medidas fossem adotadas desde que suficientes e necessárias para conter o avanço da doença, o que abrangeria a quarentena de regime geral, a qual, inclusive, foi empregada pela China com êxito em alguns locais; ii) em termos pragmáticos, a medida não deixa de separar os doentes dos sadios, que é a teleologia da norma, ainda que seja dirigida de maneira generalizada. Portanto, uma quarentena de regime geral embasa-se numa interpretação extensiva do conceito legal trazido pela Lei n. 13.979/20, o que é aceito neste artigo. Logo, de qualquer forma, deve-se examinar a proporcionalidade da medida em tela.

O raciocínio é similar ao já efetuado anteriormente. Os fins e meios seriam legítimos e o meio seria idôneo. Pode-se concluir que a medida seria necessária: uma opção a ser levada em conta à quarentena de risco difuso e aplicada de modo universal ou horizontal seria uma quarentena ou interdição vertical, a tocar apenas os grupos de maior risco de letalidade, a qual certamente seria menos afetadora dos direitos fundamentais envolvidos, porém não promoveria o fim na mesma intensidade. Logo, o que poderia mudar é o sopesamento a ser efetuado na última fase.

No caso de uma quarentena de risco difuso e aplicada de modo universal/horizontal, pode-se advogar que, por ser uma medida mais abrangente, termina por representar uma restrição ainda mais intensa, tendo em conta que alcança pessoas sem suspeita imediata de contaminação; outrossim, os impactos econômicos ingressam com maior força na ponderação neste caso, pois uma longa e mais ampla quarentena fomenta o desemprego e pode significar prejuízos irrecuperáveis e decisivos para a sobrevivência de autônomos, pequenos empreendedores e trabalhadores sem contrato de trabalho formalizado, o que pode ser ainda mais salientado quanto maior for a extensão territorial da medida. A favor do direito fundamental à saúde na perspectiva coletiva militam as razões já referidas. Qual lado deve prevalecer no conflito?

À partida, é preciso esclarecer que a segregação em tempo integral e de modo indiscriminado em regime domiciliar dificilmente teria aptidão para prevalecer na ponderação da força dos argumentos pró e contra a medida estatal. Afinal, como referido, há inúmeras pessoas que dependem de sua força de trabalho para sobreviver, não possuem recursos acumulados que permitam uma paralisação longa de suas atividades. Sem meios materiais de subsistência, os direitos ao trabalho e à (sobre)vida seriam tocados de modo excessivo, a não ser que fosse a medida cumprida em algum local destinado pelo Estado para isso, com o fornecimento estatal de suprimentos, algo que, por força da dificuldade material de operacionalizar e pela escassez de recursos, muito provavelmente não ocorrerá.

Ao revés, se for para cumprir em domicílio, o ato que a decretar deveria ser acompanhado de medidas que possam abastecer famílias carentes e que não possuam renda suficiente para atravessar o período de afastamento de seu trabalho, seja pela entrega de benefícios assistenciais, o fornecimento de itens de necessidade básica que supram minimamente as carências vitais, incentivo e facilitação ao crédito, entre outras saídas, a par de proporcionar acesso a serviços essenciais de saúde. Somente se satisfeitas essas condições será possível concluir que as razões que apoiam um como o outro polo em colisão estão em um empate argumentativo, isto é, não é possível apontar um elemento que tenha mais peso ou força. Nessa condição, reconhece-se uma margem discricionária do poder controlado que deveria ser respeitada pelo Judiciário por meio de uma posição de autocontenção. No entanto, o fator tempo pode ser decisivo: quanto mais tempo essa quarentena venha a prolongar-se[43], maior é a chance de que isso venha a reverter-se, de sorte a desnivelar o sopesamento em favor dos direitos fundamentais restringidos pela quarentena ampla e de regime geral.

Destarte, nesse cenário delicado e diante da iminência de um avanço massivo do número de infectados, as medidas excepcionais[44] e provisórias listadas recebem o rótulo de proporcionais, respeitadas as observações já tecidas, o que, diante de outro panorama fático, pode ser alterado[45], sobretudo se perdurarem excessivamente ou se houver o alcance efetivo da contenção da curva de contágio dentro de parâmetros razoavelmente aceitáveis pela sociedade e pela comunidade técnica dos profissionais da saúde.

6. Conclusões

O ingente repto lançado às autoridades sanitárias e aos profissionais de saúde pela pandemia é extensível a vários seguimentos, inclusive aos juristas e operadores do Direito, os quais têm de cuidar para que só sejam aplicadas as medidas que sejam compatíveis com a ordem jurídica vigente. Nesse ponto, certamente a reflexão aqui proposta padece de insuficiências sentidas pela necessidade de posicionamento rápido diante dos acontecimentos e dentro do quadro de conhecimento disponível até o momento. Em suma, é possível que, no futuro, o próprio autor arrependa-se do que agora defende relativamente à proporcionalidade das medidas estatais. Sem embargo do risco, enumeram-se as principais conclusões do texto:

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NOTAS:

[1] Consoante informação disponível em: <https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019>, acesso em 23 de março de 2020.

[2] Na China, onde se iniciou o primeiro contágio, após algum déficit de transparência e censura de profissionais de saúde sobre a descoberta da nova forma de coronavírus (conferir HERNÁNDEZ, Javier C. Coronavírus é teste para China; autoridades enfrentam críticas por falta de transparência. Tradução de MARTINO, Terezinha. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20/3/20, disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,coronavirus-e-teste-para-china-autoridades-enfrentam-criticas-por-falta-de-transparencia,70003168413>, acesso em 26 de março de 2020), houve o bloqueio de acesso e saída do epicentro da doença, com instituição de isolamento e quarentena geral e construção de hospital exclusivamente voltado a atender a demanda do coronavírus; as pessoas e seu estado de saúde são monitorados pelo governo com o uso de drones e aplicativos (conforme LIETTI, Tamires. As dez medidas que colaboraram para a contenção do coronavírus na China. Época. Disponível em: <https://epoca.globo.com/as-dez-medidas-que-colaboraram-para-contencao-do-coronavirus-na-china-24304181>, acesso em 26 de março de 2020), o que levanta o problema do excesso de vigilância estatal e invasão da privacidade e da reserva da vida privada (a respeito, HARARI, Yuval Noah. The world after the coronavirus. Financial Times. Disponível em: <https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75>, acesso em 26 de março de 2020). Na Coréia do Sul, houve o implemento de testes em massa da população, cuja realização ocorria fora de ambientes hospitalares, em drive-throughs, com isolamento das pessoas contaminadas e rastreamento de seus contatos também para teste, além do distanciamento social voluntário (ver CARBINATTO, Bruno. A estratégia de sucesso da Coréia do Sul contra a Covid-19: testes em massa. Superinteressante. Disponível em: < https://super.abril.com.br/saude/a-estrategia-de-sucesso-da-coreia-do-sul-contra-a-covid-19-testes-em-massa/>, acesso em 26 de março de 2020). Na Itália, depois do isolamento de regiões infectadas, algumas autoridades locais italianas determinaram a suspensão de atividades, comércios e serviços e proibição de aglomeração de pessoas como medidas iniciais, mas elas foram judicialmente contestadas e criticadas pelo governo italiano, em razão da repercussão na economia; o governo conseguiu êxito em reverter muitas dessas decisões. Da mesma forma, o governo italiano, num primeiro momento, também foi contrário à recomendação de distanciamento social voluntário; por força do pulular de óbitos e enfermos e do colapso do sistema de saúde italiano, a linha de ação foi drasticamente alterada, com imposição de quarentena e interrupção da operação de fábricas e serviços não essenciais (consoante ALESSI, Gil. Itália pagou preço alto ao resistir a medidas de isolamento social para conter coronavírus. El País. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2020-03-25/italia-pagou-preco-alto-ao-resistir-a-medidas-de-isolamento-social-para-conter-coronavirus.html>, acesso em 26 de março de 2020).

[3] O que resulta, nos termos da Lei Complementar n. 101/2000, art. 65, entre outras consequências, na dispensa do atingimento de resultados fiscais e de limitação de empenho, bem como na suspensão da contagem de prazos e das imposições de redução da despesa de pessoal e da dívida consolidada nos quadrimestres seguintes em caso de extrapolação do teto nela previsto.

[4] Alguns entes federados impuseram a suspensão geral de vários serviços públicos, a proibição de reuniões ou a limitação do número de presentes, o fechamento temporário de empreendimentos comerciais e, inclusive, toque de recolher. Por outro lado, por meio da Medida Provisória n. 926/2020, incluiu-se o §8º ao art. 3º da Lei n. 13.979/2020, que trata da obrigação de garantir o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, os quais foram enumerados nos Decretos n. 10.282/20, n. 10.288/20 e n. 10.292/20. Logo, algumas atividades que foram objeto de sobrestamento da sua operação por normas baixadas por outros entes federados agora estão classificadas como essenciais nos Decretos federais.

[5] Consoante informação dada por MENEGAT, Rodrigo; BRAMATTI, Daniel. Monitor do coronavírus. O Estado de São Paulo, Arte/Ciência. Disponível em: < https://arte.estadao.com.br/ciencia/novo-coronavirus/monitor-pandemia/>, acesso em 27 de março de 2020.

[6] Por meio de decreto, o Presidente deverá especificar o tempo de duração do Estado de Defesa – o qual não pode ser superior a trinta dias, embora prorrogável uma vez se persistirem as situações fáticas que legitimaram sua adoção –, as áreas atingidas e as medidas coercitivas aplicáveis, a exemplo da possibilidade de restrições aos direitos de reunião, sigilo de correspondência, comunicação telegráfica e telefônica, ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos. As prisões aplicadas durante a vigência do Estado de Defesa não são incomunicáveis e devem ser apreciadas, como também ocorre em termos de normalidade, pelo Poder Judiciário. O ato normativo deverá ser submetido ao Congresso Nacional em 24 horas, o qual decidirá a respeito por maioria absoluta, confirmando-o ou não.

[7] O Estado de Sítio pode ser decretado pelo Presidente da República – somente após autorização conferida por maioria absoluta do Congresso Nacional – sempre que houver comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia das medidas aplicadas no Estado de Defesa, bem como no caso de guerra ou de agressão armada estrangeira. O decreto do Estado de Sítio deve indicar duração, normas necessárias para sua execução, garantias constitucionais que ficarão suspensas, áreas abrangidas e o responsável pela execução das ações a serem implantadas para preservar a ordem. A sua vigência não pode ser maior que trinta dias nas hipóteses de comoção grave ou de ineficácia do Estado de Defesa, todavia se admitem quantas prorrogações forem necessárias. No caso de guerra ou ataque armado estrangeiro, não há limitação temporal e o Estado de Sítio vigora enquanto perdurar a situação fática que o justificou. Como medidas que importam em suspensão ou restrição de direitos, é possível determinar no Estado de Sítio a obrigação de permanência em localidade determinada, detenção em edifício não destinado a pessoas processadas ou condenadas por crimes comuns, restrições relativas à inviolabilidade de correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, televisão e radiodifusão, na forma de lei – as constrições à liberdade de imprensa e telecomunicações não alcançam os pronunciamentos parlamentares efetuados nas casas legislativas se liberados pela respectiva Mesa. Podem, ainda, ser impostas a suspensão da liberdade de reunião, a busca e apreensão em domicílio, a intervenção nas empresas de serviços públicos e a requisição de bens.

[8] Conforme lecionam Rothenburg [ROTHENBURG, Walter Claudius. Comentários aos artigos 136 a 141. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira (coordenadores). Comentários à Constituição do Brasil. 6. tiragem. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2014, p. 1.562-1.579] e Silva (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 736-746), esse sistema é concebido para tempos anormais que ameacem a ordem democrática e o Estado brasileiro – e não o governo ou grupo político que está no poder. Destacam esses juristas que há, portanto, um mecanismo, observados os requisitos do artigos 136 a 141 da Constituição, para gerenciar momentos de graves crises e salvaguardar as normas constitucionais de rupturas da ordem constitucional que poderiam ser causadas por sua inaplicação motivada em fatos extraordinários; por meio dele, preserva-se a Constituição ao impedir a descrença da sua força normativa em razão de anormalidades de força maior, o que, ao longo do tempo, garante sua maior estabilidade. Concorda-se com Rothenburg quando, na mesma obra, ele salienta que é possível defender a instituição do Estado de Defesa e de Sítio como forma de prevenção a situações extraordinárias prestes a ocorrer e não apenas como reação a elas. Rothenburg ainda sustenta que é possível a decretação do Estado de Sítio e de Defesa de forma concomitante, salvo no caso do Estado de Sítio motivado pela ineficácia das medidas adotadas no Estado de Defesa. Lobriga-se, pois, que a regência das crises não é permissão dada ao arbítrio, porquanto, além do caráter temporário e excepcional que devem marcar essas medidas, oportuniza-se o controle político feito pelo Parlamento e o controle jurisdicional para coartar eventuais excessos cometidos. A respeito do controle judicial, ambos os juristas reconhecem que a avaliação de conveniência e oportunidade compete ao Presidente da República e ao Parlamento, por meio do controle político, ao passo que o controle judicial é efetuado mormente sobre os atos praticados durante a vigência desses Estados, a permitir a responsabilização penal e civil de autores de ato ilícito. Contudo, Rothenburg, ao sustentar que cabe uma reserva política não sindicável quanto ao juízo de mérito sobre a decretação ou não de Estado de Defesa ou de Sítio, termina por ressalvar ser possível controle judicial sobre aspectos formais e sobre as medidas previstas e seus efeitos, sem prejuízo de, em casos extremos, em que se constatam evidentes abusos na justificação de sua deflagação, incidir também sobre o próprio mérito da decretação. Se essa premissa estiver verdadeira, pode-se avaliar, inclusive, se é possível o controle da inércia do Executivo Federal. Afinal, medidas drásticas, como a quarentena de regime geral, poderiam ser impostas no curso de um Estado de Sítio ou de Defesa com menor controvérsia jurídica; ademais, as crises não se importam com formalidades e não esperam o seu reconhecimento oficial para manifestarem-se. Seguramente há uma situação pandêmica que justificaria a adoção do regime excepcional constitucionalmente previsto. Nesse diapasão, poder-se-ia aventar uma omissão censurável constitucionalmente do Presidente da República, com a viabilidade de propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão pelos legitimados, o que permitiria ao Supremo Tribunal Federal, em reconhecendo a omissão oriunda do Executivo, determinar ao Executivo que, na forma da Constituição, fizesse a solicitação ao Congresso Nacional para a decretação do Estado de Sítio ou decretasse o Estado de Defesa, submetendo o ato ao Congresso. Obviamente, a avaliação da necessidade dessa decretação é um juízo político, porém, em casos limites, como parece ser esse da pandemia, seria viável a interferência do Judiciário, em função da afetação concreta a inúmeros direitos fundamentais. No entanto, o Supremo Tribunal Federal não teria a decisão final da questão, pois o reconhecimento de sua gravidade e da necessidade do regime excepcional fica a cargo do Congresso Nacional. Essa alternativa pode ser defendida, em acréscimo, pelo o fato de que o Supremo Tribunal Federal não está avaliando se há crise instalada ou não, porquanto o próprio Executivo já assim reconhece, tanto que houve o reconhecimento do estado de calamidade. De qualquer forma, ainda não se tem opinião definida a respeito da legitimidade dessa possibilidade.

[9] Apenas para ilustrar, mencionam-se ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. (Tradução de SILVA, Virgílio Afonso da). São Paulo: Malheiros, 2008, p. 281-332; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 129 e seguintes; NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 390-430. O primeiro é partidário de uma teoria do suporte fático amplo, os segundos apregoam uma teoria do suporte fático restrito, mediante interpretação sistemática da “área de proteção”, ao passo que o terceiro defende uma posição intermediária, como será verificado posteriormente. Conforme David Duarte [DUARTE, David. Gain and losses in balancing social rights. In: Proportionality in Law – An analytical perspective. DUARTE, David; SAMPAIO, Jorge Silva (editors). Cham: Springer, 2018, p. 54-55], o caráter prima facie da norma de direito fundamental resulta em duas conclusões: i) todas as variáveis de comportamento correlativos àquele direito fundamental devem ser incluídas no seu conteúdo; ii) a proteção conferida apenas pela norma constitucional é provisória, a depender de uma solução dada no conflito normativo com normas contrárias e da consequente ponderação realizada para resolvê-lo. Em sentido similar quanto à segunda conclusão de Duarte, lembra-se de COMIN, Fernando da Silva. A objeção da reserva do possível na ponderação de direitos fundamentais. In: DUARTE, David; SARLET, Ingo Wolfgang; BRANDÃO, Paulo de Tarso (orgs.). Ponderação e proporcionalidade no Estado constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 217-218.

[10] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. (Tradução de SILVA, Virgílio Afonso da). São Paulo: Malheiros, 2008, p. 281-332; BOROWSKI, Martin. La restricción de los derechos fundamentales. (Tradução de ARANGO, Rodolfo). In: Revista Española de Derecho Constitucional, n. 59, 2000, p. 38-39; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 144 e seguintes; PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 448-492; NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 390-430; SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais - Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 208-231; KLATT, Mathias; MEISTER, Moritz. The constitutional structure of proportionality. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 17-23; ALMEIDA, Luiz Antônio Freitas de. Direitos fundamentais sociais e ponderação – Ativismo irrefletido e controle jurídico racional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2014, p. 79-80; MAZUR, Maurício. Controle judicial das restrições normativas aos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2017, p. 40-64.

[11] Como leciona SILVA, Virgílio Afonso. Direitos fundamentais - Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 158 e seguintes. É o caso nítido de Pieroth e Schlink [PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais - Direito estadual II. (Tradução de FRANCO, António C.; SOUZA, António Francisco). Lisboa: Universidade Lusíada, 2008, p. 62 e seguintes] e de Dimoluis e Martins (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 144 e seguintes).

[12]ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 265 e seguintes; NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 390-430. Ambos os professores portugueses sustentam a possibilidade de definição do âmbito protegido por interpretação, retirando-se posições que, de plano, sejam inadmissíveis. No entanto, Vieira de Andrade defende a ideia de “limites imanentes”, conquanto não como uma teoria interna, a possibilitar a definição a priori de todas as limitações ocorrentes ao direito. Andrade acredita na possibilidade de restrição legislativa para as hipóteses em que haja reserva legal que a permita, na qual o legislador deverá estabelecer uma fraca prioridade do direito fundamental; no entanto, para hipóteses de colisão em concreto das normas constitucionais, o Legislativo não deverá estabelecer essa fraca ordem de prioridade, mas adotar postura flexível, de modo a, observando o caso concreto, harmonizar as normas em conflito.

[13] Sobre as ideias do parágrafo, conferir FETERIS, Eveline T. The rational reconstruction of weighing and balancing on the basis of teleological-evaluative considerations in the justification of judicial decisions. In: Ratio Juris. v. 21, n. 4, december 2008, p. 481-485, a qual advoga a maior racionalidade da ponderação por mostrar claramente as escolhas efetuadas; GARCIA, Emerson. Conflito entre normas constitucionais - Esboço de uma teoria geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 379-380, que defende que a fundamentação permite a reconstrução do caminho trilhado na ponderação; PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 170-216, o qual comenta sobre o controle dos demais atores institucionalizados; KLATT, Mathias; MEISTER, Moritz. The constitutional structure of proportionality. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 15-26, os quais apontam a camuflada ponderação na aparente objetividade de categorização dos direitos, técnica empregada pela Suprema Corte estadunidense; BELEM, Bruno Moraes Faria Monteiro. A norma da proporcionalidade e a eficácia temporal da decisão de inconstitucionalidade. In: DUARTE, David; SARLET, Ingo Wolfgang; BRANDÃO, Paulo de Tarso (orgs.). Ponderação e proporcionalidade no Estado constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 11 e seguintes, o qual fala da necessidade de preparar a ponderação com o exame de todos os argumentos e fatos de modo exaustivo, de sorte que o despreparo da ponderação leva ao desatendimento do postulado científico de explicitar as premissas e viola a norma que determina que as decisões sejam fundamentadas.

[14] SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais - Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 100 e seguintes. Entre tantos exemplos, um é bem didático e foi também trabalhado pelo jurista. Trata-se do caso decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.969-4, relator Ministro Lewandowski, acórdão publicado em 31/8/2007. O Governo do Distrito Federal havia editado um decreto que proibiu a utilização de carros de som e instrumentos sonoros nas reuniões realizadas na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes, locais muito procurados para protestos, porque são o núcleo geográfico do poder político. Como se percebe, a medida governamental não deixava de ser uma configuração ou regulamentação da liberdade de reunião, pois não vedava a sua realização, apenas disciplinava o modo de exercício dessa liberdade. Contudo, a par de configurar, operou-se certamente uma restrição ao direito fundamental, pois tolheu uma forma mais ampla de reunião que, a princípio, estaria resguardada pelo âmbito protegido desse direito. O Supremo Tribunal Federal reconheceu que havia aí uma restrição e considerou-a não razoável e desproporcional – embora o acórdão possa ser criticado porque nenhum dos julgadores tentou, de fato, estruturar a ponderação empregada, tendo em vista que não gastaram nenhuma tinta para explicar por que o meio seria inadequado, desnecessário ou desproporcional em sentido estrito, o que leva a crer que invocaram a norma da proporcionalidade de modo mais retórico que técnico.

[15] NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 390-430. Voltando ao exemplo do sacrifício de crianças como posição prima facie protegida pela liberdade de crença, a teoria defendida no texto exclui essa possibilidade de pronto, pois há um razoável consenso de que não é tolerável matar crianças para agradar um ente divino qualquer. Assim, isso evita que eventual legislação que assim proíba – ou mesmo a regra que já incrimine o homicídio e não preveja esse tipo de exceção – seja analisada pelo aspecto constitucional, por meio de um conflito entre a liberdade religiosa, por um lado, e o direito à vida e a norma que veda o sacrifício, por outro. Logo, deixa-se de banalizar a ponderação e estender-se na justificação constitucional da restrição, embora se deva reconhecer que há, de qualquer forma, algum juízo ponderativo nessa operação de afastar, de plano, algumas posições, faculdades e situações jurídicas pela aplicação da teoria de um suporte fático amplo mitigado ou mais restrito. Porém, para casos duvidosos, não há saída senão estudar se há justificação constitucionalmente válida para aquela restrição por meio da ponderação estruturada pela norma da proporcionalidade.

[16] MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. Comentário ao artigo 5º, II. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira (coordenadores). Comentários à Constituição do Brasil. 6. tiragem. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2014, p. 246-249. Em sentido contrário, DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 151.

[17] Não há um enunciado explícito no texto constitucional que traga uma justificação teórico-positiva para a  existência da norma da proporcionalidade em nosso arcabouço constitucional. Há quem sustente que a fonte dessa norma é a essência do regime de direitos fundamentais como princípios e o princípio do Estado de Direito [VIDAL, Andrea Barroso Silva de Fragoso. A norma da proporcionalidade: algumas controvérsias doutrinárias. In: DUARTE, David; SARLET, Ingo Wolfgang; BRANDÃO, Paulo de Tarso (orgs.). Ponderação e proporcionalidade no Estado constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 267-269], com o que se está de acordo, embora seja possível acrescentar um elemento decisivo de justificação teórico-normativa: a necessidade de uma fundamentação mais rigorosa para que se possa levar a cabo de modo legítimo a ponderação. Por conseguinte, é a norma da proporcionalidade, com sua estruturação em estágios analíticos separados e definidos, o melhor instrumental metódico disponível para essa empreitada.

[18] As medidas previstas são: i) isolamento; ii) quarentena; iii) determinação de realização compulsória de exames e tratamentos médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas; iv) estudo ou investigação epidemiológica; v) exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; vi)  restrição temporária e excepcional, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de entrada e saída do país e de locomoção interestadual e intermunicipal por rodovias, portos ou aeroportos; vii) requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, com o posterior pagamento de justa indenização; viii) autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na ANVISA, desde que estejam registrados por autoridade sanitária estrangeira e sejam apontados em ato do Ministério da Saúde. No caso da medida tratada no item vi, a Medida Provisória n. 927/2020 modificou a redação do §6º do art. 3º da Lei n. 13.979/20 e acrescentou o § 6º-A a esse artigo. Portanto, a intervenção em portos, aeroportos e rodovias observará ato conjunto dos Ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura, com possibilidade de que ele disponha sobre a delegação de competência para os casos omissos.

[19] Insere-se um componente de proporcionalidade, na medida em que se demandam evidências científicas e análises sobre as informações estratégicas em saúde e, especialmente, por sua limitação no tempo e espaço àquilo que seja indispensável para a promoção e a preservação da saúde pública (art. 3º, §1º). De outro lado, reconhece-se que sua aplicação é compatibilizada com derivações do direito fundamental à saúde, uma vez que obriga ao respeito do direito de obter informações permanentes sobre o estado sanitário pessoal e reforça o direito ao recebimento de prestações sanitárias de modo gratuito, além de exigir a observância dos demais direitos fundamentais e da dignidade humana (art. 3º, §2º, I a III).

[20] A Lei n. 8.080/90, art. 6º, §2º, traz o conceito de vigilância epidemiológica: “um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos”. Nos termos da Lei n. 8.080/90, embora a União tenha a competência primordial de coordenar o sistema e as ações de vigilância epidemiológica (art. 16, III, “c”, e VI), pode executá-las diretamente em caso de agravos inusitados da saúde ou se houver risco de disseminação nacional (art. 16, parágrafo único), o que certamente é o caso da COVID-19. Os Estados têm competência para coordenar e executar, de modo complementar, as ações de vigilância epidemiológica (art. 17, IV, “a”) e os Municípios, coerente com a linha de municipalização das ações e serviços de saúde, têm a obrigação de executar essas ações (art. 18, IV, “a”).

[21] Confira-se a definição de isolamento e quarentena do glossário do Guia de Vigilância Epidemiológica (BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica. 6. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005, p. 804-807. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Guia_Vig_Epid_novo2.pdf>, acesso em 24 de março de 2020.). O glossário destaca, inclusive, que o isolamento deveria ser preferencialmente executado em ambiente hospitalar, por ser mais eficaz para evitar novas contaminações.

[22] Lembra-se de GARREAU, Olivier. Droit de la santé, droit à la santé. Sarrebruck: Éditions Universitaires Européenes, 2010, p. 34-35 e 222 e seguintes, o qual salienta a imersão do princípio da precaução na política de segurança e higiene sanitária, atrelando-o com sua gênese no direito ambiental. Sobre os postulados da prevenção e precaução, WEDY, Gabriel de Jesus Tedesco. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 47 e seguintes.

[23] Com efeito, David Katz (KATZ, David L. Is our fight against coronavirus worse than the disease? New York Times, New York, 20/3/20, opinion, disponível em: https://www.nytimes.com/2020/03/20/opinion/coronavirus-pandemic-social-distancing.html, acesso em 25/3/20), diretor do Centro de Prevenção e Pesquisa da Universidade de Yale, especialista em saúde pública e medicina preventiva, é contrário a uma quarentena de regime geral (horizontal lockdown ou horizontal interdiction), em razão da recessão econômica que causaria, do tempo indefinido para retomar a vida normal e da possibilidade de identificar o grupo específico de risco de morte. Por isso sugere uma interdição vertical (vertical interdiction ou vertical lockdown) ou quarentena vertical, a qual alcança unicamente pessoas do grupo de risco e aqueles que convivem com esse grupo, uma vez que a maioria das pessoas adoeceria de modo mais brando ou sem risco mortal ou seria assintomática. O pesquisador defende, amparado nas informações divulgadas pela Coréia do Sul, que fez testes em massa da população, mesmo em pessoas assintomáticas, que lá foi possível averiguar os níveis de mortalidade, a evolução da doença e os grupos de risco, embora reconheça que há taxa pequena de mortalidade de pessoas fora desse grupo. Assim, com o tempo, mesmo sem vacina, menos pessoas estariam vulneráveis em função de que os contaminados teriam se livrado do vírus, o que, quando atingisse um número suficiente grande de pessoas, levaria ao desenvolvimento de uma imunidade de grupo a prevenir o contágio.

[24] A desobediência às medidas de isolamento e quarentena importa, segundo a Portaria Interministerial n. 5/2020, na prática dos crimes do art. 268 e 330 do Código Penal, desde que não haja a configuração de delito mais grave (art. 4º, §1º). Assim, se houver a efetiva transmissão da moléstia em razão do não acatamento dessas medidas, outros delitos podem ser consubstanciados, mormente o do art. 267 do Código Penal. Um primeiro adendo é que, no caso do isolamento e da quarentena de risco determinado, há aparente concurso de normas e a regra da especialidade deve prevalecer, de sorte que o tipo penal aplicável é apenas o do art. 268 do Código Penal. Todavia, a depender do contexto fático, seria possível a configuração do crime de desobediência em concurso material (ou formal no mínimo): na hipótese de flagrante de descumprimento da medida e caso haja desrespeito a uma segunda ordem para que a cumprisse; o comando da autoridade pública teria de ser dirigido diretamente ao autor do fato. A própria Portaria Interministerial prevê que as forças de segurança serão acionadas para efetivar as medidas sanitárias caso não haja seu acatamento (art. 6º), bem como confere à autoridade policial o poder-dever de encaminhar o infrator ao hospital ou ao seu domicílio, quando não for o caso de prisão, para cumprir as medidas sanitárias (art. 8º). Ocorre que, como o delito do art. 268 é de natureza permanente, é possível que sequer a desobediência materialize-se, porquanto, pela sistemática ordinária, a força de segurança que o flagrasse deveria encaminhá-lo de pronto para a autoridade policial, para a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência. No entanto, a depender da velocidade do contágio, do estado sanitário aparente do infrator, da própria estrutura das delegacias de polícia e das forças policiais e da segurança de que disponham para efetivar a medida, é bem provável que surjam situações em que, por razões de política criminal e desde que devidamente formalizadas e justificadas, os policiais optem por não o encaminhar diretamente à autoridade policial, ordenando o cumprimento imediato da medida de controle até então desrespeitada. Se persistir o desrespeito, ensejará a responsabilização também pelo delito de desobediência. Agora, se a ordem for dada pela autoridade policial após a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência e mais uma vez o agente não a respeitar, a par de novo delito do art. 268 do Código Penal, haverá a configuração da desobediência inequivocamente. Para tanto, deve-se provar o dolo do agente, o que se aperfeiçoa com a demonstração de que teve prévia ciência da imposição da medida sobre sua pessoa e de que ela é compulsória (art. 4º, §1º, da Portaria Interministerial n. 5/2020). Observe-se que a Portaria quis enfatizar a necessidade de que o agente seja avisado da compulsoriedade da medida, porquanto faz remissão à notificação prévia tratada no dispositivo da Portaria n. 356/2020 que disciplina, como já tratado, a quarentena de risco determinado. No caso da segunda modalidade de quarentena, exige-se a edição prévia e formal do ato que a institui pelo gestor de saúde. Uma questão que poderia advir é a de saber se o crime só se aperfeiçoa com a emissão formal da notificação. Com efeito, a interpretação adequada da norma penal não depende do preenchimento daquela formalidade para a tipificação do delito. O problema é de prova e não de nulidade processual, falta de justa causa, tipicidade da conduta ou condição de procedibilidade para a persecução penal. Portanto, a falta de emissão da notificação prévia ou do termo de consentimento – como visto, o isolamento por prescrição médica é compulsório e não consentido – por alguma falha administrativa não elide a prática do crime, pois a investigação poderá angariar provas de que o agente, embora não notificado formalmente ou sem a emissão solene do termo de consentimento, estava ciente de que deveria cumprir a medida obrigatoriamente. Obviamente, a ausência desses documentos é um forte argumento de falta de prova do dolo, porém é possível que a persecução penal obtenha evidências que permitam concluir o contrário. Diversamente, no caso da segunda modalidade de quarentena, de risco difuso ou de regime geral, a falta de ato retira a própria materialidade do delito, porque não houve a sua formal instituição, uma vez que, sem o ato administrativo devidamente editado e publicado, não há juridicamente a vigência dessa modalidade de medida de controle. Ainda cabe mencionar que a Portaria n. 356/2020 fixa que a determinação de tratamentos, exames e testes laboratoriais pode ser feita por médicos ou profissionais de saúde, ao passo que a coleta de amostras clínicas e a vacinação ou outras medidas profiláticas não dependem dessa indicação (art. 6º, caput e parágrafo único). No campo da responsabilidade, a Portaria Interministerial n. 5/5020 esclarece que apenas as medidas de tratamento médico específico, exame médico e testes laboratoriais são compulsórias e desde que sejam prescritas por médico ou profissional da saúde, a ensejar a responsabilização penal pelos artigos 268 e 330 do Código Penal (art. 4º, caput e §2º), valendo os mesmos comentários já tecidos em relação ao isolamento. Finalmente, em razão de configurarem delitos de menor potencial ofensivo, normalmente se lavra o termo circunstanciado de ocorrência e não se impõe a prisão em flagrante, desde que o agente infrator concorde em comparecer aos atos do processo e respeitar doravante as medidas sanitárias (art. 7º, parágrafo único). Se houver a prisão, há necessidade de separação dos demais presos não doentes (art. 9º, caput), cabendo, por suposto, à autoridade judicial a manutenção ou substituição da prisão por medidas cautelares diversas (art. 9º, parágrafo único).

[25] A aludida Portaria traz norma que permite a reparação de danos materiais em razão do maior ônus financeiro ao Sistema Único de Saúde (SUS), cuja legitimidade foi conferida à Advocacia-Geral da União, o que, por tabela, definiria a competência da Justiça Federal para o trâmite da demanda, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal. Sem embargo, entende-se que essa legitimidade é concorrente e não exclui a legitimidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios, por intermédio de suas respectivas advocacias públicas. Em primeiro lugar, não poderia uma portaria do Executivo mudar as normas processuais de estabelecimento de competência. Logo, a definição da competência judicial para o processamento da ação de reparação de danos é do local do dano (art. 53, IV, CPC) e, por suposto, se o prejudicado não for um ente federal, porque a despesa financeira não foi concretamente suportada pelos seus recursos, a competência será da Justiça Estadual. Logo, o dano a ser reparado é o prejuízo efetivamente sofrido por cada ente. Entrementes, diante da diretriz da municipalização do atendimento, é bem possível que o único alcançado com os prejuízos seja o Município que arcou com os custos, porquanto, embora o financiamento do sistema seja tripartite, na prática dificilmente esse ônus acrescido modificaria o montante de transferências e repasses oriundos dos demais entes federados. Caso se confira à União a exclusividade da legitimidade para essas ações, certamente se corre o risco de enriquecimento sem causa da União, mormente se o valor indenizatório for revertido para os seus cofres e não for repassado ao ente mais prejudicado. Seja como for, caso se cimente a interpretação de que a legitimidade dos demais entes públicos é concorrente, pode-se construir a possibilidade de litisconsórcio deles com a União, com o aforamento da demanda na Justiça Federal, ou mesmo de demandas aforadas na Justiça Estadual por Municípios e/ou Estados, sem a presença da União, com a pretensão de reaver os custos suportados pelos danos materiais causados ao erário desses entes federados, sem prejuízo de eventual remessa para a Justiça Federal em caso de posterior ajuizamento da ação pela Advocacia-Geral da União ou de sua petição nos autos argumentando haver interesse jurídico na demanda, nos termos da súmula n. 122 do Superior Tribunal de Justiça. Sem prejuízo da ação de reparação por danos causados pelo infrator ao SUS, a Portaria Interministerial admite, como não poderia ser diferente, a possibilidade de ação de responsabilidade civil por ato ilícito, nos termos dos artigos 186, 944, 948 e 949 do Código Civil, aforada pelas pessoas concretamente lesadas, para reparar os danos individualmente suportados. Obviamente, caso haja lesão ou sua ameaça a direito de personalidade, o art. 186 conjuga-se com o art. 12 do Código Civil, a fim de ampliar a possibilidade de tutela. A Portaria poderia ter explicitado a viabilidade de ações de natureza coletiva, para a tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Não obstante o silêncio do texto, obviamente que a lacuna é aparente, até porque não poderia a Portaria afastar a aplicação de leis. Portanto, isso não afeta a legitimidade do Ministério Público e demais entes legitimados, conforme os termos da Lei n. 7.437/85, para essa tutela coletiva. Nessa hipótese, porque o desatendimento das medidas de controle afeta ou ameaça impactar negativamente a saúde da população, é possível a cumulação de pedidos de obrigações de fazer e não fazer com o pedido de pagar quantia certa, consoante já admite a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o que já é a tônica em demandas coletivas ambientais, fato justificável, inclusive, por força de prevenir decisões contraditórias e por economia processual (como exemplo, pode mencionar-se o acórdão em Recurso Especial n. 1676459/RS, da 2ª Turma, relator Ministro Herman Benjamin, publicado no DJe em 8/3/19). Assim, o ente legitimado pode postular a condenação em obrigações de fazer e não fazer, independentemente da atuação do poder de polícia na esfera administrativa, a fim de que o renitente submeta-se às medidas de prevenção definidas na Lei n. 13.979/09. Outrossim, plenamente viável que um pleito de reparação de danos materiais ao SUS e de danos morais coletivos seja formulado na ação coletiva, inclusive porque a situação pandêmica justifica a inferência de que a coletividade como um todo sofrerá abalo moral com a notícia de casos de desobediência dessas medidas, porque o descumprimento poderá gerar desconfiança sobre a eficácia dessas ações sanitárias e também porque outras pessoas podem até ser tentadas a imitar o mau exemplo, o que produziria efeitos perigosos para todo o sistema de saúde e para a população que dele depende.

[26] A par de o infrator poder ser penalizado com multa e outras sanções administrativas previstas na legislação sanitária pertinente de cada ente federativo, a Portaria Interministerial n. 5/2020 quis reforçar que o agente público que concorrer para a prática do ilícito administrativo estará sujeito à responsabilidade disciplinar pertinente (art. 3º, §1º). No âmbito federal, vale mencionar a Lei n. 6.437/77, art. 10, VII, que trata da infração que seria cometida nessa situação, a qual é punida com advertência e/ou multa.

[27] Nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, houve o fechamento provisório de centro comerciais e terminais rodoviários e a instituição de barreiras sanitárias. No Município de Campo Grande, Estado de Mato Grosso do Sul, houve um incremento do grau de restrição de direitos em poucos dias. O Decreto Municipal n. 14.189/2020 determinou a interdição provisória de eventos públicos, a proibição de alvarás privados para eventos acima de cem pessoas, a suspensão de aulas na rede municipal de ensino e a realização de trabalho remoto para servidores em grupo de risco. Não muito tempo depois, o Decreto Municipal n. 14.200/2020 prescreveu o fechamento temporário de alguns tipos de empreendimentos comerciais, como academias, centros comerciais e bares. O Decreto Municipal n. 14.206/2020 impôs o fechamento do terminal rodoviário, o que certamente impactará os serviços de transporte intermunicipal e interestadual de passageiros. O transporte coletivo urbano também foi suspenso por quinze dias pelo Decreto Municipal n. 14.207/2020, conquanto se tenha imposto à empresa concessionária a obrigação de manter quantitativo mínimo para situações emergenciais. O Decreto n. 14.208/20 interrompeu o serviço de roçada e capina de sarjetas e passeios públicos, além de vedar temporariamente as atividades de edificação que não sejam consideradas essenciais. Em derradeiro, o Decreto Municipal n. 14.211/2020 comandou o confinamento domiciliar ou “toque de recolher” de todas as pessoas entre 22h e 5h, com proibição de circulação no período de 21 de março a 5 de abril deste ano, salvo se a locomoção tiver como finalidade o acesso ou a prestação de serviços essenciais.

[28] Não foi, porém, o que concluiu o Ministro Marco Aurélio. Na decisão dada em medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341/DF, o Ministro deferiu em parte o pleito liminar, a fim de que não se interpretem os enunciados normativos da medida provisória como óbice à competência concorrente dos demais entes federados, de sorte que ficam a autorizados disciplinar a questão sem considerar o regramento da lei federal. A decisão está disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/marco-aurelio-reafirma-competencia.pdf>, acesso em 25 de março de 2020. Assim, por força da dessa decisão, as medidas dos demais entes adotadas mesmo em contrariedade ao disposto na medida provisória estão ainda válidas.

[29] Da lista de atividades, num exame geral e perfunctório, poder-se-ia objetar que as atividades de call center e lotéricas fossem mesmo essenciais. Em relação às atividades religiosas, há severa dúvida se poderiam ser enquadradas como essenciais, em que pese o inegável contributo até para a saúde mental que o alívio espiritual possa proporcionar; no caso delas, a dúvida motiva-se no fato de que, com as tecnologias digitais disponíveis, é possível a realização de cultos e celebrações religiosas à distância. Assim, está-se mais propenso a decidir que não seriam essenciais para os fins legais. Há outras atividades que, a rigor, também não colocam em risco imediato a saúde, a segurança ou a sobrevivência da população, porém podem ser aceitas em função da sua importância para o Estado Democrático de Direito e para a própria conscientização da população, como a atividade de imprensa, tratada no Decreto n. 10.288/20. De qualquer forma, não possui o Presidente da República discricionariedade absoluta para incluir qualquer tipo de atividade como essencial, haja vista que é possível o controle de legalidade de eventuais decretos presidenciais que desbordem de seu poder regulamentar e, por tabela, ofendam a lei ao etiquetar de essenciais atividades que não o são. A propósito, entre outros argumentos, foi um dos fundamentos usados pelo Juízo da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias ao conceder a tutela provisória de urgência pleiteada pelo Ministério Público Federal, autos n. 5002814-3.2020.4.02.5118/RJ, disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/decisao-juiz-loterica-igreja2.pdf >, acesso em 28/3/2020. O Juízo Federal determinou à União e ao Município de Duque de Caxias que deixem de incentivar ações contrárias às recomendações técnicas do Ministério da Saúde e da OMS, bem como suspendeu a inclusão de lotéricas e atividades religiosas no rol de atividades essenciais. Por fim, vale destacar que há relação legal de serviços essenciais para o fim de exercício do direito de greve, Lei Federal n. 7.783/89.

[30] No Brasil, um antecedente histórico pertinente é aquele que ficou conhecido como a “Revolta da Vacina”, ocorrida no Rio de Janeiro no início do século XX, em que houve insurgência popular contra as medidas sanitárias empregadas para combater a varíola, peste bubônica e febre amarela, ordenadas em regulamento de autoria do célebre sanitarista Oswaldo Cruz. Como explicam Mendes e Souza (MENDES, Álvaro; SOUZA, Patrícia Melo e. 1904 - Revolta da Vacina. A maior batalha do Rio. Cadernos de Comunicação. Série Memória. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Secretária de Comunicação, 2006, p. 10-16, disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101424/memoria16.pdf>, acesso em 26 de março de 2020), a revolta também era influenciada pelo descontentamento com a reforma urbanística realizada concomitantemente pelo Prefeito Pereira Passos, o qual contava com “carta branca” dada pelo Presidente da República Rodrigues Alves. A reforma urbanística consistiu em demolição de cortiços e edificações centrais para a modernização da cidade e construção de largas avenidas, o que desalojou pessoas que tiveram de migrar para a periferia, contribuindo para a “favelização” da cidade. No que tange às medidas sanitárias, elas consistiam principalmente na vacinação obrigatória contra a varíola, entrada forçada nos domicílios para combate aos mosquitos vetores da febre amarela e até a demolição de edificações consideradas insalubres, além da obrigação de recolhimento dos resíduos sólidos pela população, para enfrentar os vetores da peste bubônica. Todavia, antes da sua execução, elas não contaram com amplas campanhas prévias de esclarecimento e conscientização da população, a qual, em boa parte, não compreendeu os benefícios sanitários da vacinação e desconfiava da sinceridade da ação governamental. A imposição das medidas sanitárias, principalmente a vacinação, gerou forte debate na imprensa e no Parlamento, com muitas vozes intelectuais a criticá-las, mas foram executadas após ter sido debelado movimento com apoio das forças armadas. Por suposto, a influenciar os insurgentes, havia interesses políticos, como defende Marcelo Neves (NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules – Princípios e regras constitucionais.  São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 202 e seguintes), da oposição e de militares ligados ao jacobinismo florianista, que pretendiam assaltar o poder. O autor também menciona que vacinação obrigatória contra a varíola foi reforçada pela Lei n. 1.261/1904, porquanto tal medida, conquanto já fosse disposta em diplomas legais anteriores, não havia sido posta em prática. Nessa época, o próprio Rui Barbosa posicionou-se de forma enfática contra a vacinação, inclusive motivando sua conclusão com base na desproporcionalidade da medida. Em discurso ao Senado em 1904, ele argumentou que a medida era inadequada ao fim e, portanto, desproporcional, pois a imunização pretendida pela vacina era uma opinião contestada por várias opiniões divergentes, com grande controvérsia, não sendo, pois, uma verdade sacramentada; assim, nem a vacina era comprovadamente inofensiva para o vacinado nem havia corroboração indubitável dos seus efeitos benéficos. De outro lado, permitir a vacinação contra a vontade seria um abuso contra o direito individual ao seu bem de personalidade: seu próprio corpo (apud NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules – Princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 204). O Águia de Haia é corretamente criticado por Marcelo Neves, tanto porque Barbosa desconsiderou os dados exitosos das anteriores campanhas de vacinação promovidas por Oswaldo Cruz, como por exigir, para esse tipo de tomada de decisão, verdades inquestionáveis, o que dificilmente ocorre no campo da ciência. Cabe lembrar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal chegou a conceder ordem de habeas corpus (Recurso de Habeas Corpus n. 2.444/RJ, relator Min. Pedro Antônio de Oliveira Barreiro, acórdão publicado no Diário Oficial da União em 3/2/1905), por entender que a entrada forçada no domicílio da pessoa não estava amparada em lei, mas em regulamento, o que seria contrário ao direito fundamental de inviolabilidade de domicílio, que exigia reserva legal para sua restrição, de forma que a lei não poderia ter delegado ao Executivo as hipóteses em que seria viável a invasão do lar. Segundo Neves, a Lei Federal n. 1.551/1904, que reorganizava os serviços de higiene da União, foi desenvolvida pelo Regulamento n. 5.156/1904 e, ao contrário do que foi reconhecido pelo Supremo, não se poderia ter dado ênfase à separação de poderes, tendo em conta que a própria Lei n. 1.551/1904 previa algumas sanções e até a prisão. O jurista critica a ponderação supostamente realizada pelo tribunal ao reconhecer incidentalmente a inconstitucionalidade da norma regulamentar, inclusive no tocante à entrada forçada no domicílio, porque era uma solução socialmente inadequada e paralisante das reformas sanitárias, sem prejuízo de que o Judiciário atuasse apenas para coibir abusos ou evitasse eventuais prisões ilegais. Curiosamente, no mesmo ano em que o Supremo Tribunal Federal concedia o habeas corpus supramencionado, nos Estados Unidos, a Suprema Corte enfrentou diretamente o tema da constitucionalidade da vacinação obrigatória no caso Jacobson v. Massachusetts, 197 U.S.11 (1905). A conclusão da maioria da Corte foi que a lei de vacinação obrigatória contra a varíola editada por um Estado membro não era inconstitucional, porquanto não maculava a cláusula do devido processo legal e da igual proteção da lei. O caso tratava de um cidadão que se recusou a ser vacinado e foi condenado a uma multa por isso. Ele argumentava, entre outras coisas, que havia evidências de que a vacinação era inócua ou poderia até fazer mal para o vacinado, de modo que a lei estadual privou sua liberdade sem respeitar o devido processo legal e em desacordo com o preâmbulo da Constituição; ademais, por permitir apenas que crianças deixassem de ser vacinadas se clinicamente fosse atestado a inadequação da vacina para elas, haveria uma violação da cláusula de igual proteção. A Corte, por maioria, com a redação da opinion a cargo do Justice Harlan, considerou que o controle de constitucionalidade não poderia ser feito com base no preâmbulo, mas só com as normas da Constituição. No tocante à restrição imposta à liberdade pela legislação sanitária, o Tribunal considerou que estava na competência dos Estados o exercício, legalmente pautado, do poder de polícia e que ações de ordem sanitária eram matéria adstrita a esse poder. A Supreme Court rejeitou a ideia de direitos absolutos e afirmou que a legislação era baseada em opiniões de especialistas, de modo que não seria possível ao Judiciário enfrentar o mérito da política sanitária encampada pelo Legislativo amparado em opiniões (existentes à época) de outros especialistas contrários à vacinação. Logo, como a legislação tinha relação com o fim a que se propunha, não havendo falta de razoabilidade, era inviável a censura da Corte. O Tribunal, porém, ressalvou que mesmo leis constitucionais poderiam ser aplicadas de maneira excessiva ou arbitrária, o que justificaria o controle judicial, o que não era o caso dos autos. Sobre a cláusula de proteção igual, afastou-se sua violação, inclusive porque Jacobson não provou que a vacina não era clinicamente adequada para si.

[31] ALMEIDA, Kellyne Laís Laburú Alencar de. O paradoxo dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2014, p. 175; CANAS, Vitalino. O princípio da proibição do excesso na conformação e no controlo de atos legislativos. Coimbra: Almedina, 2017, p. 17-63.

[32] Como sói ocorrer com todos os direitos fundamentais positivados como princípios jurídicos, sobretudo pela apreensão da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, a agregar-lhes novas funções além da conhecida perspectiva subjetiva. Sobre a perspectiva ou dimensão objetiva e a compreensão dos direitos fundamentais como categorias multifuncionais, remete-se a SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 166 e seguintes. Sobre a faceta positiva e negativa do direito à saúde, remete-se para BOTHE, Michael. Les concepts fondamentaux du droit à la santé: le point de vue juridique. In: DUPUY, René-Jean (ed.). The right to health as a human right - Workshop, The Hague, 27-29 July 1978. Alphen aan den Rijn - The Netherlands: Sijthoff & Noordhoff, 1979, p. 14 e seguintes. Em sentido parcialmente divergente, VALE, Luís A. M. Meneses do. Access to health care between rationing and responsiveness: problem(s) and meaning(s). In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. v. LXXXVIII, Tomo I, 2012, p. 128-152, o qual defende que a dimensão negativa do direito à saúde já era protegida por direitos de liberdade, como os direitos à vida e à integridade física. Em maior oposição à tese de uma dupla dimensão do direito à saúde, SOUZA, Marcelo Rebelo de; ALEXANDRINO, José de Melo. Constituição da República portuguesa comentada. Lisboa: Lex, 2000, p. 172-173, os quais argumentam ser duvidoso extrair do direito à proteção da saúde uma feição de direito, liberdade e garantia, por raciocínio similar a Meneses do Vale.

[33] BRITO, Miguel Nogueira de. Direitos e deveres dos utentes do serviço nacional de saúde. In: Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. v. XLIX, n. 1 e 2, 2008, p. 101-114; MONCRIEFF, Abigail R. The freedom of health. In: University of Pennsylvania Law Review. v. 159, 2010-2011, p. 2.212 e seguintes; CORREIA, José Manuel Sérvulo. As relações jurídicas administrativas de prestação de cuidados de saúde. 2009. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/616-923.pdf>, acesso em 30/11/16, p. 46 e seguintes; SAINT-JAMES, Virginie. Le droit à la santé dans la jurisprudence du Conseil constitutionnel. In: Revue du Droit Public - et de la science politique en France et à L’Étranger. N. 2, mars-avril 1997, p. 457 e seguintes; GARREAU, Olivier. Droit de la santé, droit à la santé. Sarrebruck: Éditions Universitaires Européenes, 2010, p. 419 e seguintes.

[34] KLATT, Mathias; MEISTER, Moritz. The constitutional structure of proportionality. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 109-148; PIRKER, Benedikt. Proportionality analysis and models of judicial review - A theoretical and comparative study. Groningen: Europa Law Review, 2013, p. 61-84.

[35] SAMPAIO, Jorge Ferreira. Proportionality in its narrow sense and measuring the intensity of restrictions on fundamental rights. In: DUARTE, David; SAMPAIO, Jorge Silva (editors). Proportionality in Law – An analytical perspective. Cham: Springer, 2018, p. 105; URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise no divã. Diagnóstico: Bipolaridade? In: RIBEIRO, Gonçalo de Almeida; COUTINHO, Luís Pereira (orgs.). O Tribunal Constitucional e a crise - Ensaios críticos. Coimbra: Almedina, 2014, p. 14 e seguintes.

[36] Em relação à estruturação do exame de proporcionalidade e de seus subtestes, a literatura é vasta. Para uma estruturação tripartida do teste, mencionam-se ALEXY, Robert. Balancing, constitutional review, and representation. In: International Journal of Constitutional Law, v. 3, n. 4, 2005, p. 572-577; ALEXY, Robert. Derechos fundamentales, ponderación y racionalidad. (Tradução de PAZOS, David García). In: SEGADO, Francisco Fernández (ed.). La Constitución Española en el Contexto Constitucional Europeo. Madrid: Dykinson, 2003, p. 1.509-1.514; BOROWSKI, Martin. La restricción de los derechos fundamentales. (Tradução de ARANGO, Rodolfo). In: Revista Española de Derecho Constitucional, n. 59, 2000, p. 38-39. Para uma estruturação quadripartida, apontam-se PAVCNIK, Marijan; LACHMAYER, Friedrich.The principle of proportionality (theses for discussion). In: SIECKMANN, Jan-Reinard (editor).  Legal Reasoning: The Methods of Balancing. Proceedings of the special workshop “Legal Reasoning. The Methods of Balancing” held at the 24th World Congress of the International Association for Philosophy of Law and Social Philosophy (IVR), Beijing, 2009. Stuttgart: Franz Steiner Verlag/Nomos, 2010, p. 161-167; SWEET, Alec Stone; MATHEWS, Jud. Proportionality balancing and global constitutionalism. In: Columbia Journal of Transnational Law, v. 47, 2008, p. 75-79. A esse respeito, cambiou-se parcialmente a posição sustentada em ALMEIDA, Luiz Antônio Freitas de. Direitos fundamentais sociais e ponderação – Ativismo irrefletido e controle jurídico racional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2014, p. 87 e seguintes, a qual sustentava uma estruturação tripartida.

[37] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica. 6. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005, p. 37/38. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Guia_Vig_Epid_novo2.pdf>, acesso em 24 de março de 2020. Segundo o Guia de Vigilância Epidemiológica, a investigação epidemiológica implica exame do doente, seus contatos, detalhes da histórica clínica e dos dados epidemiológicos, coleta de amostras para laboratório, procura de casos adicionais, identificação do agente infeccioso, determinação da transmissão ou ação do agente patógeno, busca de locais contaminados ou de vetores e o esclarecimento de fatores contribuintes para a ocorrência dos casos. A depender do cuidado no exame do caso e dos comunicantes, pode ser possível identificar as formas iniciais da moléstia e instituir o tratamento ou o isolamento, para evitar a sua difusão na comunidade. A investigação epidemiológica não é equivalente a pesquisa epidemiológica, pois, embora haja semelhanças, parte-se do pressuposto de que há premência de uma célere resposta, o que justifica que alguns dos procedimentos adotados na investigação não possuam o rigor necessário para estabelecer uma relação causal. Em outras palavras, nem sempre se inicia a investigação com hipóteses claras e ela geralmente se vale de estudos descritivos para formulação a posteriori de hipóteses, que deverão ser testadas depois em estudos analíticos. Mormente em casos de problemas agudos que demandam respostas imediatas, a investigação de campo restringe a coleta de dados, para maior agilidade na análise, a fim de espoletar ações de controle imediatas.

[38] ALEXY, Robert. Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales. (Tradução de PULIDO, Carlos Bernal). In: Revista Española de Derecho Constitucional, n. 66, 2002, p. 28-58.

[39] Ao posicionar-se como adepto da ponderação, não se está a sustentar que ela deva ser aplicada sem qualquer metódica. À partida, a metodologia é exposta na sua estruturação pelo teste de proporcionalidade e dentro de uma coerência teórica que, segundo se acredita, não permite que este texto seja rotulado de neoconstitucionalista ou que careça de método, algo bem criticado por MONTEIRO, Arthur Maximus. Controle de constitucionalidade das omissões legislativas. Curitiba: Juruá, 2015, p. 103 e seguintes.

[40] BARAK, Aharon. Proportionality - Constitutional rights and their limitations. (Tradução de KALIR, Doron). Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2012, p. 340-370; CLÉRICO, Laura. El examen de proporcionalidad en el derecho constitucional. Serie tesis. Buenos Aires: Facultad de Derecho de Buenos Aires/EUDEBA, 2009, p. 163-318; MESA, Gloria-Patrícia Lopera. El principio de proporcionalidad y los dilemas del constitucionalismo. In: Revista Española de Derecho Constitucional. n. 73, enero-abril (2005), p. 394-397.

[41] ALEXY, Robert. Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales. (Tradução de PULIDO, Carlos Bernal). In: Revista Española de Derecho Constitucional, n. 66, 2002, p. 32-58; ALEXY, Robert. On balancing and subsumption. A structural comparision. In: Ratio Juris, v. 16, n. 4, 2003, p. 436-449. Outrossim, a destacar que a eficiência da medida restritiva é um fator que aumenta a importância de sua aplicação e, por tabela, da sua força no juízo ponderativo, preleciona SAMPAIO, Jorge Ferreira. Proportionality in its narrow sense and measuring the intensity of restrictions on fundamental rights. In: DUARTE, David; SAMPAIO, Jorge Silva (editors). Proportionality in Law – An analytical perspective. Cham: Springer, 2018, p. 103-106. Ora, como as medidas de quarentena e isolamento para a finalidade sanitária foram já testadas com sucesso em outras latitudes, com razoável consenso científico, seria um elemento que aumenta a força das razões que apoiam a promoção do direito à saúde na perspectiva coletiva.

[42] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2010, p. 183-184.

[43] À época em que o artigo foi escrito e enviado para a publicação, ainda não havia sido aprovada e publicada a Lei n. 13.982/20, a qual instituiu o auxílio emergencial provisório, para auxiliar financeiramente os hipossuficientes por força da crise econômica causada pela pandemia. A respeito do critério do tempo para examinar a intensidade da compressão do âmbito protegido do direito fundamental, Sampaio propõe três regras de orientação que podem ser empregadas na ponderação aqui tratada: i) quanto mais tempo durar a restrição ao direito, maior será a intensidade da restrição; ii) quanto mais rápida for aplicada a restrição ao direito, maior a intensidade da restrição; iii) quanto mais frequente for a restrição, maior será sua intensidade. Conferir em SAMPAIO, Jorge Ferreira. Proportionality in its narrow sense and measuring the intensity of restrictions on fundamental rights. In: DUARTE, David; SAMPAIO, Jorge Silva (editors). Proportionality in Law – An analytical perspective. Cham: Springer, 2018, p. 103-106.

[44] Embora não seja objeto do texto, é pertinente tecer algumas notas a respeito da legitimidade constitucional de medidas restritivas do direito de reunião, liberdade de crença e da liberdade de locomoção adotadas por alguns Estados e Municípios, tais como o toque de recolher, a proibição de celebrações religiosas presenciais e o impedimento de reuniões a partir de um determinado número de pessoas. Tal como ocorre com as medidas aqui examinadas, há a deflagração de um conflito normativo, o qual deve ser resolvido pela metódica da proporcionalidade. Como são medidas adotadas no mesmo contexto de crise, porém, é possível abreviar a argumentação com o seguinte nó mental: são medidas que, a despeito de tocarem âmbitos de proteção de outros direitos fundamentais –  e, por isso, merecerem uma reflexão mais elaborada, o que não será possível aqui – traduzem, na prática, soluções menos drásticas que uma quarentena de regime geral e horizontal. Em outros vocábulos: se a quarentena de regime geral e horizontal/universal passar no teste de proporcionalidade – e, nesse primeiro momento, a conclusão é que haveria de o Judiciário respeitar a margem de discricionariedade estrutural de ação do poder controlado se satisfeitas as condições mínimas para garantir a subsistência de quem precisa –, as demais também passariam, porque são intervenções estatais mais amenas ao âmbito protegido desses direitos. Para ilustrar esse raciocínio, basta verificar que a proibição de aglomeração de pessoas a partir de um quantitativo qualquer afeta a liberdade de reunião, porém, se a quarentena de risco difuso e horizontal for instituída, por óbvio que qualquer reunião em local público ficará abortada, independentemente do número de pessoas. O mesmo ocorre com a realização de cultos e celebrações religiosas, que abrange tanto a liberdade de crença como a liberdade de realizá-los sem interferência estatal, um componente especificado da liberdade de reunião mais geral. Aliás, diante das tecnologias hoje presentes, a própria interferência na liberdade religiosa é mais enfraquecida do que seria décadas atrás, tendo em vista que as ferramentas digitais permitem a realização de cultos e celebrações religiosas à distância pela internet. Mesmo o polêmico toque de recolher, que atalha a liberdade de locomoção, não deixa de ser uma intervenção mais débil que a quarentena de regime geral e horizontal – ou até é uma forma enfraquecida de quarentena horizontal – diante da simples observação de que esta compele todos a manterem-se segregados em tempo integral ou quase integral e não apenas nos horários estabelecidos; a esse respeito, estaria em jogo o critério da “extensão da área” sobre o conteúdo do direito, proposto por Jorge Sampaio [SAMPAIO, Jorge Ferreira. Proportionality in its narrow sense and measuring the intensity of restrictions on fundamental rights. In: DUARTE, David; SAMPAIO, Jorge Silva (editors). Proportionality in Law – An analytical perspective. DUARTE, David; SAMPAIO, Jorge Silva (editors). Cham: Springer, 2018, p. 103-106].

[45] Obviamente que eventual superação posterior da regra de prevalência de um princípio sobre outro, criada como resultado da ponderação empregada agora, deverá ser justificável e cuidadosamente motivada, até para não desprestigiar a segurança jurídica, como adverte RIBEIRO, Ney Rodrigo Lima. Princípio da dignidade da pessoa humana: (im)possibilidade de sua ponderação? Enfoque luso-brasileiro. In: DUARTE, David; SARLET, Ingo Wolfgang; BRANDÃO, Paulo de Tarso (orgs.). Ponderação e proporcionalidade no Estado constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 175.