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O Pacote Anticrime e a nova sistemática de arquivamento da investigação penal

A Lei nº 13.964/2019 veiculou o denominado “Pacote Anticrime” e alterou diversos diplomas normativos de natureza extrapenal, penal e processual penal, incluindo o art. 28 do Decreto-lei nº 3.689/1941, que veiculou o Código de Processo Penal. Esse preceito dispunha sobre a necessidade de o órgão do Ministério Público requerer, ao juízo competente, o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação. Com a alteração promovida, o arquivamento deixa de ser requerido pelo Ministério Público ao juiz competente e passa ser ordenado. O objetivo de nossas breves reflexões é o de analisar as alterações promovidas e as dificuldades de ordem pragmática a serem enfrentadas para a sua plena operatividade, considerando que, entre a manifestação inicial dos órgãos de execução e o pronunciamento final do Procurador-Geral de Justiça, não mais se colocará a avaliação intermediária do Poder Judiciário. Aliás, foi justamente em razão dessas dificuldades que o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida em juízo de cognição sumária, suspendeu a eficácia da nova redação do art. 28 do CPP (ADI-MC nº 6.298/DF). Como a vacatio legis transcorreu integralmente durante o período de recesso parlamentar e não houve tempo hábil para as adaptações necessárias, entendeu-se afrontada a norma constitucional que exigia prévia dotação orçamentária para a realização da despesa pública (CRFB/1988, art. 169), além da própria autonomia financeira dos Ministérios Públicos (CRFB/1988, art. 127). Esses vícios, à evidência, assumem contornos pro tempore, logo, hão de ser superados em futuro próximo.

 

Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A nova sistemática de arquivamento da investigação penal; 3. Modelos possíveis para a revisão interna das decisões de arquivamento; Epílogo; Referências bibliográficas. 

  1. Aspectos introdutórios

            O denominado “Pacote Anticrime” foi veiculado pela Lei nº 13.964/2019, que alterou diversos diplomas normativos de natureza extrapenal, penal e processual penal, incluindo o art. 28 do Decreto-lei nº 3.689/1941, que veiculou o Código de Processo Penal. Esse preceito dispunha sobre a necessidade de o órgão do Ministério Público requerer, ao juízo competente, o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação. Caso considerasse improcedentes as razões invocadas, o juízo encaminharia o expediente ao Procurador-Geral, que poderia oferecer denúncia, designar outro membro do Ministério Público para fazê-lo ou prosseguir nas investigações, ou ainda insistir no pedido de arquivamento, ao qual somente então estava o juízo obrigado a atender.

            Não era necessário um aguçado espírito científico para se perceber que o modelo diuturnamente observado há pouco menos de oitenta anos era no mínimo anacrônico. Afinal, em um sistema como o nosso, acusatório, o Poder Judiciário atuava como uma espécie de liame entre os órgãos de base do Ministério Público e a Chefia Institucional, estando vinculado ao juízo de valor por ela realizado. Mas se a palavra final era do Ministério Público, dominus litis da ação penal, era difícil compreender a razão de ser ou a relevância dessa participação. Não se colocava em dúvida, obviamente, a importância do controle. A perplexidade decorria apenas da participação do Poder Judiciário  [1], que parecia não se coadunar com a sua imparcialidade para julgar o caso em momento futuro.

            Vale lembrar que essa anomalia fora abandonada há alguns anos na Justiça Federal. Tal ocorreu com base  no disposto no art. 62, IV, da Lei Complementar nº 75/1993, que atribuiu às Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal competência para “manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral”.  [2] Entre os inúmeros sentidos possíveis, optou-se por entender, cerca de duas décadas após a promulgação da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público da União, que a manifestação ali referida simplesmente substituíra aquela que o art. 28 do CPP outorgara ao Poder Judiciário. Não seriam fornecidos, portanto, meros subsídios à atuação do Procurador-Geral da República, que sequer atuaria. A manifestação seria conclusiva e os arquivamentos não mais passariam pelo Poder Judiciário. Esse entendimento não recebeu contestações de maior monta no âmbito da Justiça Federal e terminou por se estabilizar.

             O objetivo de nossas breves reflexões é o de analisar as alterações promovidas e as dificuldades de ordem pragmática a serem enfrentadas para a sua plena operatividade no âmbito dos Ministérios Públicos dos Estados, considerando que, entre a manifestação inicial dos órgãos de execução e o pronunciamento final do Procurador-Geral de Justiça, não mais se colocará a avaliação intermediária do Poder Judiciário. Aliás, foi justamente em razão dessas dificuldades que o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida em juízo de cognição sumária, suspendeu a eficácia da nova redação do art. 28 do CPP  [3]. Afinal, apesar da reestruturação administrativa exigida e dos impactos orçamentários a serem gerados para o Ministério Público, a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, publicada no mesmo dia, deveria entrar em vigor no dia 23 de janeiro de 2020. Como a vacatio legis transcorreu integralmente durante o período de recesso parlamentar e não houve tempo hábil para as adaptações necessárias, entendeu-se afrontada a norma constitucional que exigia prévia dotação orçamentária para a realização da despesa pública (CRFB/1988, art. 169), além da própria autonomia financeira dos Ministérios Públicos (CRFB/1988, art. 127). Esses vícios, à evidência, assumem contornos pro tempore, logo, hão de ser superados em futuro próximo.

  1. A nova sistemática de arquivamento da investigação penal

            Com a alteração promovida no art. 28 do CPP, o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza deixa de ser requerido pelo Ministério Público ao juiz competente e passa ser ordenadopelo órgão do Ministério Público. Eis a redação do preceito:

“Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei.

§ 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.

§ 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial.”

            O primeiro aspecto a ser analisado diz respeito ao objeto do arquivamento. Diversamente ao que se verificava na sistemática anterior, que fazia menção ao inquérito policial e a “quaisquer peças de informação”, passou-se a fazer referência aos “elementos informativos da mesma natureza”. A distinção, embora sutil, não pode passar despercebida. Para que seja possível estabelecer a correlação entre o inquérito policial e esses elementos informativos, é necessário identificar a sua natureza.

            O inquérito policial, na síntese de Tornaghi (1977: 249), “é a investigação do fato, na sua materialidade, e da autoria”, destinando-se a oferecer elementos para o juízo de valor do titular da ação penal. Trata-se de procedimento “inquisitório, escrito e sigiloso. Nele não há qualquer acusação e, portanto, não enseja a defesa”.  [4] Em consequência, para que os elementos informativos a que se refere o art. 28 tenham a mesma natureza do inquérito, devem integrar uma investigação, qualquer que seja o designativo que lhe seja atribuído  [5]. Não nos parece que qualquer elemento informativo (rectius: peça de informação) possa ser considerado da mesma natureza pela só razão de poder ser utilizado como meio de prova, a exemplo do que ocorre com o inquérito. Fosse assim, estaríamos perante um pleonasmo vicioso com a exigência de que seja da mesma natureza, pois qualquer elemento o seria. Caso o elemento informativo não seja “da mesma natureza”, a sistemática de arquivamento seguirá a regulamentação interna, não sendo imperativa a homologação a que se refere o art. 28 do CPP.

            A constatação anterior assume singular relevância ao lembrarmos que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que, ínsito no poder de o Ministério Público ajuizar a ação penal, está o de investigar  [6]. Na ocasião, o Tribunal fixou a seguinte tese: “o Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/1994, art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa Instituição”. O denominado procedimento investigatório criminal foi objeto de disciplina pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Resolução CNMP nº 181/2017), devendo ser ainda detalhado no âmbito de cada Instituição.

            Como se constata, os “elementos informativos da mesma natureza” a que se refere a atual redação do art. 28 do CPP são substancialmente distintos das peças de informação a que se referia a redação anterior. Essas peças podem acompanhar uma notitia criminis endereçada ao Ministério Público e, à mingua de qualquer verossimilhança na narrativa ou de utilidade na prova apresentada, ser indeferidas de plano. No direito positivo vigente, ainda que momentaneamente ineficaz, não se aplicará a sistemática a que se refere o art. 28 do CPP em relação às denominadas peças de informação. Tal somente ocorrerá em relação à investigação penal propriamente dita, gênero que alberga o inquérito policial conduzido pela polícia judiciária e o procedimento investigatório criminal, ou expediente similar, a cargo do Ministério Público.

            O arquivamento deve ser ordenado pelo “órgão do Ministério Público”. O Ministério Público, a exemplo de qualquer estrutura estatal de poder, deve ter suas atribuições definidas pela ordem jurídica. Principiando pelo plano constitucional, identifica-se a divisão entre o Ministério Público da União e os Ministérios Públicos Estaduais e, no âmbito de cada Instituição, há inúmeras subdivisões internas, que buscam assegurar a especialização das funções, a divisão equânime do trabalho e o aumento da eficiência. Cada órgão de execução, portanto, exercerá apenas as atribuições que lhe forem outorgadas pela ordem jurídica. Apesar da obviedade dessa constatação, alguns podem questionar: mas e o princípio da unidade? Ele não autoriza que um agente exerça as atribuições afetas a outro? Sim, isto é possível, mas apenas quando a ordem jurídica o autoriza, o que decorre do princípio mais amplo da legalidade, o qual nenhuma estrutura estatal de poder se exime de observar, e, de modo mais específico, do princípio do promotor natural, situado pelo Supremo Tribunal Federal no plano infraconstitucional  [7] e que busca afastar o acusador de exceção.

            Uma vez ordenado o arquivamento da investigação penal, o art. 28 impõe dois deveres ao órgão de execução do Ministério Público: realizar comunicações e submetê-lo à revisão.

            As comunicações devem ser direcionadas à vítima, ao investigado e à autoridade policial, tendo funcionalidades bem diversificadas. 

            Em relação à vítima, nos termos do § 1º do art. 28, a comunicação lhe dá a possibilidade de, diretamente ou por seu representante legal, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar do seu recebimento, submeter a matéria à “revisão dainstância competente do órgão ministerial”. Trata-se da mesma “instância de revisão ministerial” referida no caput do preceito, responsável por realizar a homologação de todas as promoções de arquivamento. Como a revisão é imposta por lei, a manifestação da vítima somente terá o efeito útil de facilitar o surgimento de um raciocínio dialético em relação às razões apresentadas pelo órgão de execução que ordenou esse arquivamento. Essa manifestação de vontade, portanto, não é requisito indispensável à reapreciação da matéria no âmbito do Ministério Público. É como se fosse interposto um recurso voluntário em feito sujeito à remessa necessária (CPC/2015, art. 496).

            Na medida em que o prazo para a manifestação da vítima principia com o recebimento da comunicação, é necessária a utilização de meios que permitam a sua comprovação (v.g.: escritos, digitais etc.), sob pena de restar frustrado o exercício do direito que lhe foi assegurado. A exemplo do entendimento prevalecente em relação à generalidade das causas penais  [8], a contagem não se restringe aos dias úteis, técnica adotada na lei processual civil (CPC/2015, art. 219).

            O § 1º do art. 28 assegurou um direito à vítima ou ao seu representante legal. O enunciado linguístico “conforme dispuser a respectiva lei orgânica”, inserido na parte final do preceito, não tem o condão de atribuir contornos programáticos ao referido direito. Afinal,  o preceito dispõe sobre o legitimado, o requerimento a ser formulado, o requisito para sua apresentação, o prazo e o órgão que irá apreciá-lo. A lei orgânica disporá apenas sobre o órgão competente para realizar a revisão, o que, quando muito, pode retirar uma atribuição já outorgada há décadas ao Procurador-Geral de Justiça, jamais impedir que a vítima exerça o seu direito. 

            O § 2º do art. 28, em evidente má-técnica legislativa, dispõe sobre a possibilidade de a revisão do arquivamento do inquérito policial, ser provocada pela chefia do órgão ao qual couber a representação judicial da União, dos Estados e dos Municípios, “nas ações penais relativas a crimes praticados” em detrimento desses entes federativos. Como a temática da investigação penal é contextualizada no plano pré-processual, no qual se buscam elementos probatórios que tornem possível o ajuizamento da ação penal, é evidente que a referência a esse instrumento é inadequada. O que se almejou dizer, pura e simplesmente, foi que essa provocação poderia ocorrer nas investigações afetas a esses crimes. Também a referência exclusiva ao arquivamento do inquérito policial, quando o caput do preceito também alcança “quaisquer elementos informativos da mesma natureza”, é fruto de mero deslize semântico, dentre muitos esparramados pela Lei nº 13.964/2019, não de uma verdadeira opção processual. Afinal, tratamento diferenciado como esse não se sustentaria à luz da lógica ou da razão  [9].

            A comunicação ao investigado é um imperativo de civilidade. Afinal, qualquer um que se veja envolvido em uma investigação penal tem sobre sua cabeça uma verdadeira espada de Dâmocles, que tende a abalar a mais destemida das pessoas de bem. Pessoas assim certamente se verão aliviadas com o arquivamento da apuração. Esse raciocínio, por certo, não é extensivo aos infratores habituais, que tendem a ver com regozijo o reconhecimento público de suas façanhas. Não há óbice, ademais, a que o investigado direcione arrazoado ao órgão de revisão do arquivamento, quer demonstrando o acerto das razões apresentadas pelo órgão de execução, quer estabelecendo um contraponto em relação aos argumentos em contrário apresentados pela vítima, embora não seja exigido o estabelecimento do contraditório nesse plano.

            Por fim, o arquivamento da investigação deve ser comunicado à autoridade policial, o que assume indiscutível relevância em relação à política de segurança pública. Permite que sejam conhecidas as conclusões do Ministério Público a respeito dos fatos investigados, aumentando, desse modo, a completude dos bancos de dados existentes, o que apresenta indiscutível relevância para o aprimoramento da atividade estatal.

            Ordenado o arquivamento e realizadas as comunicações exigidas pelo art. 28, o respectivo órgão de execução deve encaminhar os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, o que deve ser feito na forma da lei. Como se percebe, em relação à persecução penal, o controle parcialmente externo exercido pelo Poder Judiciário foi substituído por um controle integralmente interno, realizado pelo próprio Ministério Público.

            A lei referida no caput do art. 28 é a lei orgânica da Instituição, mencionada literalmente no § 1º do mesmo preceito. Trata-se da sedes materiae para a definição das atribuições dos órgãos da Instituição. De acordo com a sistemática constitucional, as grandes linhas dessas atribuições devem ser estabelecidas pela Lei Orgânica Nacional, de iniciativa privativa do Presidente da República (CRFB/1988, art. 61, § 1º, I, d), o que foi feito com a edição da Lei nº 8.625/1993. Lei complementar estadual, por sua vez, cuja iniciativa, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal  [10], é privativa do respectivo Procurador-Geral de Justiça, irá detalhar, nos termos do art. 128, § 5º, da Constituição de 1988, a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público.

            Em relação à temática ora analisada, a Lei nº 8.625/1993 estabelece regramentos distintos, com completude diferenciada, conforme estejamos perante arquivamentos promovidos diretamente pelo Procurador-Geral de Justiça ou pelos Promotores de Justiça, os quais atuam primordialmente em primeira instância. 

            No primeiro caso, é outorgada ao Colégio de Procuradores de Justiça atribuição para “rever, mediante requerimento de legítimo interessado, nos termos da Lei Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informações determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição originária” (art. 12, XI). Nessa situação, não se tem propriamente uma instância de homologação, mas, sim, revisional, a partir de provocação do interessado. Assim ocorre porque, nos termos do art. 29, VII, o Chefe da Instituição tem o poder de “determinar o arquivamento de representação, notícia de crime, peças de informação, conclusão de comissões parlamentares de inquérito ou inquérito policial, nas hipóteses de suas atribuições legais”.

            No segundo caso, somente é feita referência à atribuição do Procurador-Geral de Justiça para designar membro do Ministério Público para “oferecer denúncia ou propor ação civil pública nas hipóteses de não confirmação de arquivamento de inquérito policial ou civil, bem como de quaisquer peças de informações” (art. 10, IX, d). Não é indicado, portanto, o órgão responsável pela revisão da promoção de arquivamento, o que certamente foi influenciado pelo disposto no art. 28 do CPP, que atribuía esse munus, há décadas, ao Procurador-Geral. Apesar desse silêncio, é factível que a essencialidade do Ministério Público não permite que uma atribuição simplesmente deixe de ser exercida por não ter sido outorgada a órgão específico da Instituição. Como o Procurador-Geral de Justiça, além de exercer a Chefia Institucional (art. 10, I), pode designar membros para assegurar a continuidade do serviço (art. 10, IX, d) e para exercer as funções afetas a outro membro, ad referendum do Conselho Superior (art. 10, IX, g), essa atribuição deve ser atraída para si caso a Lei Orgânica Estadual não seja alterada e eventualmente disponha de modo diverso.

  1. Modelos possíveis para a revisão interna das decisões de arquivamento

            Ao transitarmos da Lei nº 8.625/1993 para a lei orgânica estadual, é necessário identificar os modelos passíveis de serem adotados, que são o puramente concentrado e o escalonado, de viés difuso-concentrado. Esses dois grandes modelos mostram-se compatíveis com as especificidades do Ministério Público e a sua utilização dependerá do volume de investigações penais existente no âmbito do respectivo ente federativo  [11]. Esse aspecto mostra-se particularmente relevante ao lembrarmos que, sob a égide da redação original do art. 28 do CPP, os arquivamentos promovidos pelo Ministério Público eram pulverizados entre todos os juízes, do respectivo Estado, com competência na matéria. Esses magistrados avaliavam os arquivamentos e, caso discordassem, remetiam os autos para a avaliação da Chefia Institucional, que decidiria em caráter definitivo, podendo oferecer a denúncia, designar outro órgão do Ministério Público para oferecê-la ou prosseguir nas investigações, ou mesmo insistir no pedido de arquivamento, ao qual só então estaria o juiz obrigado a atender. Nessa sistemática, o Procurador-Geral de Justiça era instado a rever um pequeno percentual dos arquivamentos promovidos. A partir do momento em que a nova redação do art. 28 produzir efeitos, a intermediação do Poder Judiciário deixará de existir e o órgão de revisão passará a rever a integralidade dos arquivamentos realizados, o que pode importar na transição, de algumas centenas de expedientes, para uma ou mais centenas de milhar.

            No modelo puramente concentrado, a atribuição de revisão seria outorgada a um único órgão. Considerando a forma como a Administração Superior do Ministério Público foi estruturada pela Lei nº 8.625/1993, esse órgão poderia ser o Procurador-Geral de Justiça, o Conselho Superior do Ministério Público ou o Colégio de Procuradores de Justiça, já que função dessa natureza parece não se afeiçoar à atuação da Corregedoria-Geral. Esses órgãos poderiam contar com o apoio de uma assessoria especializada, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. A revisão por órgão colegiado tem sido adotada, com êxito, no âmbito do Ministério Público Federal. A distinção em relação aos paradigmas estaduais é que o volume de investigações e arquivamentos é sensivelmente inferior.

            No modelo escalonado, de viés difuso-concentrado, a lei orgânica reproduziria um sistema similar àquele adotado na redação original do art. 28 do CPP, com a diferença de que a avaliação preliminar, a cargo do Poder Judiciário, passaria a ser realizada por órgãos do próprio Ministério Público. Sob essa ótica, a solução mais plausível parece ser a atribuição aos Procuradores de Justiça do munus de realizar essa avaliação preliminar. Afinal, esses agentes, nos termos do art. 19, § 2º, da Lei nº 8.625/1993, já têm a atribuição de exercer “inspeção permanente dos serviços dos Promotores de Justiça nos autos em que oficiem, remetendo seus relatórios à Corregedoria-Geral do Ministério Público”.

            Não se ignora, é certo, que em alguns Estados da Federação esses agentes se apresentam em reduzido número, sequer existindo um Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça, como autorizado pelo art. 13 da Lei nº 8.625/1993, por não alcançarem quantitativo superior a quarenta membros. No entanto, esse quantitativo tende a ser influenciado pelo volume forense, daí a presunção, certamente juris tantum, de que não seria inviável a absorção da nova atribuição. Também aqui seria plenamente aplicável a sistemática das assessorias.

            A opção pelo modelo escalonado faria que os arquivamentos ordenados fossem diretamente encaminhados, pelos Promotores de Justiça, aos Procuradores de Justiça, os quais, aquiescendo, homologariam o arquivamento. Caso dissentissem, encaminhariam os autos ao órgão de revisão final (v.g.: Procurador-Geral de Justiça), que decidiria em caráter definitivo, homologando-o ou, caso divergisse, designando outro membro para prosseguir no feito. Para que seja preservada a unidade institucional, as teses fixadas pelo órgão de revisão final seriam vinculantes para os Procuradores de Justiça, o que configuraria um ponto de equilíbrio necessário em relação à independência funcional, princípio que, apesar da percepção equivocada de muitos, não é uma espécie de ilha indiferente ao seu entorno, que subsiste sozinha no sistema brasileiro. A preocupação com a unidade, aliás, é uma das razões pelas quais os arquivamentos, nos termos do art. 28 do CPP, devem ser submetidos a um órgão de revisão.

            Como dissemos, enquanto não alterada a lei orgânica estadual, o Procurador-Geral de Justiça atuará como órgão de revisão dos arquivamentos ordenados pelos Promotores de Justiça, o que significa dizer que incidirá, em sua plenitude, o disposto na Lei nº 8.625/1993, que o autoriza a delegar tanto suas funções administrativas (art. 10, VIII) como as de órgão de execução (art. 29, IX). A delegação, como se sabe, cria uma regra derivada de competência, estabelecendo a forma como será exercida e a possibilidade, ou não, de os atos praticados serem revistos pela autoridade delegante  [12]. A partir dessa constatação, é possível afirmar que a adoção do modelo escalonado, de viés difuso-concentrado, com a consequente atuação dos Procuradores de Justiça, sequer demandaria alteração legislativa.

Epílogo

 

A alteração promovida pela Lei nº 13.964/2019 no art. 28 do CPP fortalece o sistema acusatório e a imparcialidade do Poder Judiciário, sendo digna de encômios. O grande desafio a ser enfrentado pelos Ministérios Públicos dos Estados encontra-se na necessidade de construir um modelo de revisão dos arquivamentos que seja não só efetivo, permitindo uma ampla e visceral análise das razões adotadas pelos órgãos de execução, como viável sob a ótica operativa. 

Assim que a nova redação do art. 28 do CPP começar a produzir efeitos, a intermediação do Poder Judiciário deixará de existir e todos os arquivamentos carecerão de homologação pelo órgão de revisão, o Procurador-Geral de Justiça, ao menos até que a respectiva lei orgânica estadual seja alterada, deslocando essa atribuição para órgão diverso. Para que o volume de serviço não torne o controle interno meramente simbólico, seria de bom alvitre a adoção de um modelo escalonado, de viés difuso-concentrado, no qual a avaliação inicial seria realizada pelos Procuradores de Justiça, encaminhando-se à Chefia Institucional apenas os casos em que ocorresse a negativa de homologação.  

 

Referências bibliográficas

 

GARCIA, Emerson. Interpretação Constitucional. A resolução das conflitualidades intrínsecas da norma constitucional. São Paulo: Atlas, 2015.

__________. Ministério Público. Organização, Atribuições e Regime Jurídico. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

LOPES JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

POLASTRI, Marcellus. Curso de Processo Penal. 9º ed. Brasilia: Gazeta Jurídica, 2016.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das leis Processuais Penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, 2º vol. São Paulo: Saraiva, 1977.

 

Notas:

  [1] Cf. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das leis Processuais Penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 279. 

  [2] A LC nº 75/1993 veicula  sistemática similar em relação (a) ao Ministério Público Militar, no art. 136, IV, cabendo a decisão final ao Procurador-Geral da Justiça Militar, nos termos do art. 397, § 1º, do CPPM; e (b) ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, no art. 171, V, cabendo a manifestação final ao Procurador-Geral de Justiça, o que resultava da aplicação da redação original do art. 28 do CPP. No Código Eleitoral, em seu art. 357,  §1º é prevista a atuação do Procurador Regional Eleitoral, de modo similar à antiga redação do art. 28 do CPP.

  [3] ADI-MC nº 6.298/DF, rel. Min. Luiz Fux, decisão monocrática de 22/01/2020, DJe de 03/02/2020.

  [4] A doutrina especializada não destoa desse entendimento: LOPES JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 31; POLASTRI, Marcellus. Curso de Processo Penal. 9º ed. Brasilia: Gazeta Jurídica, 2016, p. 83.

  [5] O termo circunstanciado, lavrado pela autoridade policial na hipótese de infração penal de menor potencial ofensivo, no qual são requisitados os exames periciais necessários (Lei nº 9.099/1995, art. 69), tem a natureza jurídica de investigação sumária. O arquivamento, portanto, previsto no art. 76 da Lei nº 9.099/1995, seguirá a sistemática do art. 28 do CPP.

  [6] STF, Pleno, RE nº 593.727/MG, rel. p/acórdão Min. Gilmar Mendes, j. em 14/05/2015, DJ de 25/05/2015.

  [7] STF, Pleno, HC n. 69.599/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 30.06.1993, DJU de 27/08/1993, p. 17.020. No mesmo sentido: STF, Pleno, HC n. 70.290/RJ, caso “Jogo do Bicho”, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 30/06/1993, Revista do MPRJ n. 10/291; 1ª T., HC n. 71.429/SC, rel. Min. Celso de Mello, j. em 25/10/1994, DJU de 25/08/1995, p. 26.023; 2ª T., HC n. 77.723/RS, rel. Min. Néri da Silveira, j. em 15/09/1998, DJU de 15/12/2000, p. 063; e 1ª T., RE n. 255.639-SC, rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 13/02/2001, Inf. n. 217/2001.

  [8] STF, Pleno, AgR na Rcl. nº 23.045, rel. Min. Edson Fachin, j. em 09/05/2019.

  [9] A respeito dos postulados da interpretação jurídica, vide: GARCIA, Emerson. Interpretação Constitucional. A resolução das conflitualidades intrínsecas da norma constitucional. São Paulo: Atlas, 2015, p. 492-512.

  [10] STF, Pleno, ADI nº 4.142, rel. Min. Roberto Barroso, j. em 20/12/2019, DJe de 26/02/2020.

  [11] São bem impressivos os dados do Conselho Nacional do Ministério Público, a respeito das promoções de arquivamento formuladas pelos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal, conforme as Regiões do País, em 2018: (a) Centro-Oeste – 61.379; (b) Nordeste – 39.391; (c) Norte – 19.955; (d) Sudeste – 466.040; e (e) Sul – 177.837. In: https://cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/mp-um-retrato, acessado em 26 de agosto de 2020.

  [12] Cf. GARCIA, Emerson. Ministério Público. Organização, Atribuições e Regime Jurídico. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 301-302 e 617.