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O novo coronavírus e o sistema prisional paraense: por uma atenção à saúde da população carcerária

A Constituição Federal de 1988 marcou o retorno à democracia no Brasil e garantiu o direito à saúde, à educação e a políticas sociais para diminuir as desigualdades. Mas os fundamentos das leis não foram sentidos pelos brasileiros empobrecidos, pois ainda hoje lutam para sobreviver à falta de assistência médica e educacional e de políticas de criação de emprego e renda.

Essa situação ficou mais evidente com o novo coronavírus. A COVID-19 mostrou que o Sistema Único de Saúde (SUS) há anos agoniza e, com a sobrecarga deste, segue junto com os infectados para uma Unidade de Tratamento Intensivo. Diferentemente do SUS, cujo orçamento é reduzido, os órgãos de segurança pública e de controle social e o sistema prisional contam com recursos financeiros cada vez maiores. Com isso, os governos exibem sua principal política pública destinada aos pobres: o encarceramento em massa. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019, p. 149) mostra que no Estado do Pará, foram gastos R$ 2.711.633.109,99 com segurança em 2018, enquanto, no mesmo período, foram destinados R$ 2.494.153.175,56 à saúde (BRASIL, 2020).

Os gastos maiores com esse fim não se transformam em melhorias nos estabelecimentos prisionais, que estão superlotados e em condições insalubres. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com aproximadamente 748 mil detentos, com taxa de lotação de 197%. Com esse número, estamos atrás só dos Estados Unidos e da China. No Pará, há 20.280 aprisionados. Nos presídios da Região Metropolitana de Belém (RMB), que abrange 7 dos 144 municípios do Estado, contam-se 10.050 encarcerados (PARÁ, 2020a).

Segundo a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (PARÁ, 2020a), até o dia 12 de maio de 2020, a taxa de ocupação dos presídios da RMB era de 182%, ultrapassando a capacidade máxima de 5.523 e aumentando a chance de contaminação generalizada. Nas prisões, as doenças alastram-se porque encontram o ambiente propício: espaços insalubres, superlotados e frágil sistema de saúde. Essa situação ainda se agrava pela antipatia da sociedade com os encarcerados, o que leva os gestores públicos a serem pouco sensíveis com os cuidados a esta população.

A COVID-19 é um vírus silencioso, mutável e não eletivo, por não ter um padrão de contágio, inexistindo ainda uma vacina preventiva. Com poucas informações sobre a ação do vírus no organismo humano, pela ciência sabe-se que ele age em cada organismo de uma maneira: se para alguns pode não passar de uma gripe leve, com sintomas de febre e dores no peito, para outros, é letal.

Em virtude disso, o Conselho Nacional de Justiça (2020) instituiu a Recomendação n.º 62 para orientar magistrados, servidores públicos, técnicos e pessoas privadas de liberdade que integram o sistema de justiça penal, prisional e socioeducativo que tenham cautela e não disseminem a COVID-19 nas delegacias, presídios, hospitais penitenciários.

Simooya (2010) salienta que as movimentações dos detentos em diferentes setores, o trânsito diário de advogados, assistentes sociais e familiares dos encarcerados, fazem com que as doenças se espalhem rapidamente. Sánchez et al. (2020) dizem que, no ambiente externo à prisão, um infectado propaga o vírus para duas ou três pessoas; por outro lado, no ambiente prisional, um interno com COVID-19 seria responsável por contaminar até dez.

A promoção da saúde no cárcere significa não apenas prevenir doenças, mas também oferecer qualidade de vida aos detentos. É importante, portanto, pensar em medidas para garantir a saúde dos aprisionados, afinal, eles são titulares do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, de valor absoluto, único e insubstituível. Diante do quadro pandêmico, devemos preocupar-nos com a entrada da COVID-19 no sistema prisional brasileiro.

Stuart Kinner et al. (2020) indicam que as prisões são excluídas ou tratadas separadamente na saúde pública, mas deveriam receber medidas preventivas e emergenciais, sobretudo em períodos de pandemia; caso contrário, muitos encarcerados morrerão ou contagiarão trabalhadores da segurança pública, médicos, familiares e advogados, mantendo o ciclo de contágio.

Antes da pandemia, as doenças comuns entre os segregados do Estado do Pará eram tuberculose, diabetes, HIV, hipertensão, dermatites e doenças cardiovasculares. Esses males não levam à morte rápida, tanto que a taxa anual de mortalidade nos estabelecimentos prisionais é em média de 7 pessoas. Hoje, há 192 presos contaminados pelo novo coronavírus, 89 estão curados e não há óbitos. Os detentos infectados são assistidos na própria unidade ou transferidos ao Presídio Estadual Metropolitano n.º 3, localizado em Marituba. No interior do Pará, os infectados são isolados em celas individuais para que não contaminem os demais (PARÁ, 2020b).

As ações dos gestores do sistema prisional estão centradas na higiene e na proibição de visitas ao ambiente carcerário. O êxito dessas ações, demonstrado pelo número de recuperados e por não haver óbitos, porém, não diminui a preocupação com a contaminação em massa. É um desafio proteger a população em geral do novo coronavírus. Realizar essa mesma tarefa entre os encarcerados é uma empreitada muito maior, ante a impossibilidade do distanciamento social num ambiente superlotado.

Embora não haja óbito em decorrência da COVID-19 nos presídios do Pará, não podemos minimizar a atenção à saúde dessa população. O Estado tem o dever e a obrigação de garantir a dignidade da pessoa humana aos detentos do sistema prisional.

 

Artigo originalmente publicado em Boletim Cientistas Sociais | n. 83. Disponível: http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2415-boletim-cientistas-sociais-n-83

Escrito por Luiz Márcio Cypriano, Larissa Cypriano e Luis Cardoso.

Luiz Márcio Cypriano é promotor de justiça - MPPA e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Larissa Cypriano é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Luis Cardoso é Doutor em Antropologia Social pela UFSC e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Artigo

 

Referências:

BRASIL. Ministério da Saúde. Portal da Transparência. 2020. Disponível em: http://aplicacao.saude.gov.br/portaltransparencia/index.jsf. Acesso em: 16 maio 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação n.º 62, de 17 de março de 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246. Acesso em: 12 maio 2020.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública: 2019. São Paulo, 2019. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf. Acesso em: 16 maio 2020.

KINNER, Stuart A.; YOUNG, Jesse T.; SNOW, Kathryn; SOUTHALAN, Louise; LOPEZ-ACUÑA, Daniel; FERREIRA-BORGES, Carina; O’MOORE, Éamonn. Prisons and custodial settings are part of a comprehensive response to COVID-19. The Lancet, v. 5, p. 188-189, April 2020. Disponível em: https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lanpub/PIIS2468-2667(20)30058-X.pdf. Acesso em: 13 maio 2020.

PARÁ. Secretaria de Estado de Administração Penitenciária. Dados da população carcerária: Unidades Prisionais do Estado por Região de Integração. 2020a. Disponível em: www.seap.pa.gov.br. Acesso em: 12 maio 2020.

PARÁ. Secretaria de Estado de Administração Penitenciária. Informações sobre Covid-19. 2020b. Disponível em: http://www.seap.pa.gov.br/content/covid-19. Acesso em: 4 maio 2020.

SÁNCHEZ, Alexandra; SIMAS, Luciana, DIUANA, Vilma; LAROUZE, Bernard. COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, maio 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X2020000500502&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em: 13 maio 2020.

SIMOOYA, Oscar Ozmund. Infections in Prison in Low and Middle Income Countries: Prevalence and Prevention Strategies. The Open Infectious Diseases Journal, [s.l.], v. 4, n. 2, p. 33-37, 2010. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228685437_Infections_in_Prison_in_Low_and_Middle_Income_Countries_Prevalence_and_Prevention_Strategies. Acesso em: 13 maio 2020.


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