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A corrupção na elaboração e na gestão do orçamento público: o caso das emendas parlamentares na realidade brasileira

Em ambientes democráticos, a aprovação do orçamento público é ato privativo do Poder Legislativo. Nesse processo, é natural que as propostas apresentadas pelos órgãos competentes sejam discutidas e eventualmente modificadas. Como ocorre, aliás, no processo legislativo regular. Acresça-se que a aprovação do orçamento é influenciada por diversas negociações de natureza política, que refletirão a intensidade do apoio oferecido ao Poder Executivo. Na realidade brasileira, não é diferente. O complicador é que, em terra brasilis, o processo de negociação das emendas parlamentares projeta-se sobre a própria execução da despesa pública, permitindo que os parlamentares se intrometam em seara afeta ao Executivo. Tal prática, de efeitos extremamente deletérios para o interesse público, é o objeto dessas breves linhas.

 

Em ambientes democráticos, a concepção de legalidade acompanha o exercício do poder político tal qual a sombra acompanha o corpo. Em outras palavras, não há conduta possível sem que uma lei a autorize. Em se tratando de gasto público, essa lei é o orçamento.

O orçamento, em sua essência, está estritamente vinculado à concepção de Estado de Direito, sendo meio adequado ao planejamento, à realização e ao controle da atividade estatal, que, durante certo lapso temporal, deve manter-se adstrita aos balizamentos financeiros por ele estabelecidos. A necessidade de ser definido em lei é bem explicada por Barbalho[1] (1902: 104): “[n]ão se póde dizer livre o povo que, por seos mandatários (ou por si mesmo, nas pequenas democracias), não fixa ao governo, o limite, que este não deve ultrapassar, do sacrifício imposto a cada cidadão de uma parte de seos haveres em troca das vantagens sociaes que esperam do estado. (...) Não menos importa á bolsa do cidadão fixar-se o limite ás despesas da administração e a restricta  distribuição d’ellas pelos diversos serviços públicos, e por isso devem ser também reguladas e prefixadas por lei”.

Apesar de aprovado pelo Poder Legislativo, o orçamento é gerido no âmbito de cada estrutura estatal de poder. Em relação ao Poder Executivo, principal responsável pelo oferecimento de serviços públicos, as decisões políticas fundamentais são tomadas pelo seu Chefe e o orçamento é executado pelos órgãos inseridos em sua estrutura. Por força do princípio da separação dos poderes, com exceção dos gastos vinculados (ex.: aplicação de percentual mínimo das receitas em saúde e educação) e dos balizamentos oferecidos pelo orçamento, não há outra ingerência possível por parte do Poder Legislativo. Apesar disso, o povo brasileiro tem presenciado, de modo silencioso, o desenvolvimento de uma prática de todo reprovável.

Como a tradicional tensão dialética entre Poder Executivo e Poder Legislativo cedeu lugar à tensão entre “bloco de governo” e “bloco de oposição”, permitindo que as mesmas forças políticas dominem ambas as estruturas de poder, tem sido natural que o Executivo busque atrair, com benesses (ex.: oferecendo Ministérios e Secretarias, prática vedada em solo francês e norte-americano há mais de dois séculos), o maior número possível de parlamentares para o “bloco de governo”. Aliás, foi justamente isso o que ocorreu com o denominado “Caso do Mensalão”, um dos maiores escândalos de corrupção envolvendo as elites políticas brasileiras: parlamentares recebiam uma mesada em troca do apoio político aos interesses do governo. A prática a que nos referimos e que tem sido reiterada, ano após ano, em plena luz do dia, diz respeito aos critérios que norteiam a apresentação de emendas ao orçamento e ao modo como a despesa pública é realizada.

Em rigor conceitual, qualquer emenda apresentada por parlamentares, ao projeto de lei orçamentária, além de permanecer adstrita aos balizamentos constitucionais (ex.: é vedado o aumento de despesa), deveria ser direcionada pelo interesse público. Na prática, não é isso o que ocorre. As emendas parlamentares, em muitas ocasiões, são negociadas com o Poder Executivo em troca do apoio do partido político às suas iniciativas. Sua aprovação resulta na introdução de dotações orçamentárias de indiscutível generalidade (ex.: “estruturação do sistema de atenção básica à saúde”), transferindo para o momento da execução do orçamento a definição das respectivas medidas e regiões beneficiadas. Até aqui, apesar da maior liberdade outorgada ao Poder Executivo, a ilicitude ainda não se mostrou em sua plenitude. O desvirtuamento ocorre quando o Executivo atribui ao próprio parlamentar o poder de escolher o destino a ser dado aos recursos contemplados em sua emenda, o que é feito com relativa frequência, inclusive com o acesso direto ao sistema informatizado do governo. Nesse caso, dissolve-se a separação dos poderes e o parlamentar, de posse da senha que lhe permite acessar o sistema, ou confere prioridade aos seus “nichos eleitorais”, simplesmente ignorando a existência de outras prioridades ou, o que é pior, “obriga” os beneficiários em potencial a contratarem as empresas por ele indicadas e a aceitarem a prestação ofertada, ainda que em desacordo com o pactuado. Nesse caso, o parlamentar, conluiado com a empresa beneficiada, divide os ganhos. Era justamente essa a sistemática da denominada “Máfia dos Sanguessugas”, que desviava recursos federais destinados à saúde.

Práticas dessa natureza terminam por institucionalizar a corrupção.[2] Afinal, alguns parlamentares, ao aderirem ao “bloco de governo”, o fazem com o só objetivo de obter uma vantagem de ordem pessoal, relegando a plano secundário o interesse público. O aperfeiçoamento do sistema passa pela supressão de práticas imorais como essa, em que é grande a influência de fatores escusos no processo de formação das decisões políticas fundamentais.

A outorga de poder, ainda que informal, aos parlamentares, para que decidam a melhor maneira de executar a lei aprovada pelo Parlamento, também evidencia uma indevida delegação de competências. Delegação, como se sabe, é o ato pelo qual a autoridade partilha certos poderes, inseridos em sua esfera de competência, com outra, que os exercerá de acordo com a sua convicção pessoal, distinguindo-se, assim, da mera representação. A delegação cria uma nova regra de competência, de natureza derivada, que coexiste com a competência originária, esta afeta à autoridade delegante. Na medida em que a autoridade delegada não é detentora da competência originária, dela não pode dispor, o que, ressalva a existência de autorização expressa, afasta a possibilidade de subdelegações (delegatus non potest delegare). Atua, apenas, naquele espaço deixado pelo delegante, o que impede sejam criadas novas competências à sua pura discrição.

A delegação de poderes pode assumir contornos (1) genéricos ou específicos, conforme a competência seja integral ou parcialmente transferida, nesse último caso com a definição das limitações a serem observadas; e (2) condicionados ou incondicionados, conforme o exercício da competência esteja sujeito, ou não, a condições específicas, como a necessidade de os atos serem ratificados pelo delegante. A possibilidade de delegação está ínsita na própria regra de competência administrativa, somente sendo vedada quando a lei assim o dispuser. O ponto basilar da delegação é a sua necessária inserção na própria estrutura de poder que detêm a competência. Tratando-se de estrutura diversa, como é o caso da transferência de competências do Executivo para o Legislativo ou o Poder Judiciário, será manifesta a sua injuridicidade, isso porque não há qualquer vinculação entre as autoridades delegante e delegada, o que afasta a incidência do princípio hierárquico, de vital relevância nessa seara.  

 Quando o Poder Executivo permite que parlamentares incursionem na execução da despesa pública, participando da própria gestão orçamentária, afigura-se evidente que ele se despe de suas próprias competências, agindo à margem da juridicidade. No extremo oposto, também ao Poder Legislativo é vedado delegar suas competências ao Poder Executivo. Em razão das impropriedades historicamente praticadas em solo brasileiro, aquilo que estava ínsito no sistema constitucional passou a ser expresso. Com a reconstrução democrática do País, o art. 25 do ADCT revogou “todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional” (v.g.: as delegações conferidas ao Instituto Brasileiro do Café – Lei nº 1.779/52; ao Conselho Nacional de Seguros Privados – Decreto-Lei nº 73/66; ao Conselho Nacional de Turismo – Decreto Lei nº 55/66 etc.). Como se costuma dizer no direito norte-americano, “the powers confined to one department cannot be exercised by the other...”.

 Apesar da constatação de que a ingerência parlamentar, projetando-se da negociação das emendas ao orçamento à própria execução da despesa pública, tem sido campo propício à prática de atos de corrupção, nossa classe política não tergiversa nas tentativas de legalizar comportamentos que afrontam a lógica e a razão. O último deles está materializado na nova redação do art. 29 da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, ainda em vacatio legis quando da sua alteração pela Lei nº 13.204, de 14 de dezembro de 2015. A Lei nº 13.019/2014, de forma simbólica, já que não aplicável às organizações sociais, um dos principais instrumentos de desvio do dinheiro público na atualidade, procurou estabelecer mecanismos de controle mais rígidos das parcerias voluntárias mantidas pelo Poder Público com as organizações da sociedade civil. Um desses mecanismos foi a previsão do “chamamento público”, de modo que todos os interessados pudessem submeter os seus projetos à Administração Pública e celebrar eventuais parcerias em igualdade de condições, o que ocorre por intermédio dos termos de colaboração, de fomento ou, a partir da Lei nº 13.204/2015, do acordo de cooperação.

O art. 29 da Lei nº 13.019/2014, de singular imoralidade, passou a ter a seguinte redação, verbis:

 

Os termos de colaboração ou de fomento que envolvam recursos decorrentes de emendas parlamentares às leis orçamentárias anuais e os acordos de cooperação serão celebrados sem chamamento público, exceto, em relação aos acordos de cooperação, quando o objeto envolver a celebração de comodato, doação de bens ou outra forma de compartilhamento de recurso patrimonial, hipótese em que o respectivo chamamento público observará o disposto nesta Lei”.

 

Como dissemos, as emendas parlamentares à lei orçamentária são negociadas em troca de apoio ao Poder Executivo. Raramente têm por objetivo satisfazer o interesse público, destinando-se, primordialmente, a atender aos nichos políticos do respectivo parlamentar. Não bastasse isso, o Poder Executivo, em não poucas ocasiões, como se tornou público, por exemplo, com a “mafia das ambulâncias”, permite que o próprio autor da emenda indique o destinatário das receitas, que é definido a partir de meticulosa negociata. Para fechar com chave de outro, o art. 29 da Lei n. 13.019/2014 passou a permitir que as organizações da sociedade civil que receberão esses recursos sejam escolhidas sem chamamento público, vale dizer, serão escolhidas “a dedo”. Aliás, tal qual ocorria com a “mafia das ambulâncias”, em que o parlamentar que direcionava o recurso aos Municípios indicava as sociedades empresárias conluiadas e por ele controladas, que participariam da licitação na modalidade convite. Iniciativas como essa, embora comuns em nossa realidade, certamente seriam impensáveis em países de nível civilizatório mais elevado.

A gravidade desse quadro é bem percebida pela manchete do Jornal O Globo de 15 de janeiro de 2016. Após noticiar que, apesar da grave crise financeira que assolava o País, a lei orçamentária fixou as receitas endereçadas ao fundo partidário em valor correspondente a quase o triplo da proposta original do governo, acresceu que, “além disso, os 594 parlamentares terão direito a R$ 9 bilhões em emendas individuais ao Orçamento da União”. Ora, por maior que seja nossa crença nos seres humanos e nas instituições, é difícil acreditar, com o afrouxamento dos freios morais da nossa classe política, que esses recursos serão efetivamente direcionados à satisfação do interesse público.



[1] Commentarios à Constituição Federal Brazileira, Rio de Janeiro: Typographia da Companhia Litho-Typographia, 1902, p. 104.

[2] Cf. GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 8ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 59-61.


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