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Jurisdição Constitucional e Legitimidade Democrática: Tensão Dialética no Controle de Constitucionalidade

A perceptível expansão da jurisdição constitucional, com especial destaque para a aferição da compatibilidade, ou não, das opções legislativas com a Constituição, constantemente realimenta o debate em torno de sua falta de legitimidade democrática. Argumenta-se, ainda, com o possível surgimento do governo dos juízes, no qual predomina o ativismo judicial e é relegado a plano secundário o próprio alicerce de sustentação da democracia representativa. O objeto do presente estudo é justamente a análise de algumas das múltiplas construções teóricas que normalmente tangenciam essa temática.

      

Sumário: 1. O governo dos juízes? 2. A Expansão da Jurisdição Constitucional; 3. A judicialização da política e a politização do Judiciário; 4. Balizamentos na Atuação do Tribunal Constitucional; 5. A legitimidade das decisões do Tribunal Constitucional: uma breve referência; 6. Vetores de contenção ao ativismo judicial; Epílogo.

 

  1. O governo dos juízes?

 

O relevante papel desempenhado pelos órgãos jurisdicionais no delineamento da norma de conduta, reflexo inevitável de uma metódica concretizadora, que vê na realidade um elemento indissociável do conteúdo da norma, ao que se soma o controle de constitucionalidade das leis, que permite sejam cotejadas e quiçá invalidadas quando dissonantes da Constituição, mantêm a atualidade do “formidável problema” a que se referiu Cappelletti:[1] é possível, num regime democrático, que indivíduos (os juízes) ou grupos (os corpos judiciários), relativamente isentos de responsabilidade e que não sejam escolhidos pelo povo, possam impor sua própria hierarquia de valores e suas “predileções pessoais”[2] ao interpretar as disposições constitucionais, cuja vagueza semântica não precisa ser lembrada?

Esse problema, à evidência, admite uma multiplicidade de respostas, cuja direção e intensidade variarão conforme o evolver das instituições estatais e os valores sociopolíticos sedimentados em dado Estado.

A expressão “governo dos juízes”, em sua gênese, refletia uma crítica direcionada à frequente intervenção da Suprema Corte norte-americana nas opções políticas do Executivo e do Legislativo, que eram confrontadas com a Constituição e, não raras vezes, invalidadas.

As críticas assumiram grande intensidade por ocasião do New Deal, conjunto de medidas que buscava combater os efeitos deletérios da depressão de 1929, tendo a Suprema Corte invalidado inúmeros atos que compunham a política econômica do Presidente Roosevelt. O embate assumiu proporções institucionais, sendo largamente difundida a proposta de que o número de juízes deveria ser alterado, inclusive por lei ordinária, o que poderia conduzir a uma composição simpática às propostas do Executivo. Em sequência, o Tribunal recuou e passou a adotar uma postura de autocontenção (self restraint), sendo a crise superada.[3]

A expressão “governo dos juízes” bem refletia o sentimento de inúmeros autores e atores políticos norte-americanos quanto à frequência e à intensidade das matérias alcançadas e regidas pela jurisprudência da Suprema Corte. Para alguns, o autor da expressão foi o francês E. Lambert, na obra Le gouvernement des juges et la lutte contre la législation sociale aux États-Unis – L’expérience américaine du controle judiciaire de la constitutionnalité des lois, Paris: Marcel Giard & Cie, 1921.[4] Ocorre que, consoante o próprio Lambert, a expressão fora cunhada uma década antes por L. B. Bondin, sendo o título de um marcante estudo publicado na Political Science Quaterly no 26, pp. 238-270, no auge da campanha de protesto realizada pelo Presidente Roosevelt.[5] Segundo Lambert, os fundamentos dessa teoria decorriam da associação cada vez mais estreita dos tribunais à elaboração legislativa,[6] critica que já enunciava uma concepção demasiado ampla da esfera política interdita à ingerência do Judiciário. A visão clássica de Montesquieu, que norteara os trabalhos da Convenção de Filadélfia, teria sido profundamente alterada,[7] sendo a supremacia política do Judiciário conquistada às expensas do Legislativo, importando numa invasão dos domínios do statute law, iniciativa que poderia ser associada à sistemática prevalecente no sistema de common law, também herdado pelos norte-americanos.[8] Com isto, o statute law passou a ter o significado declarado pelos juízes, nada podendo ser feito pelo legislador para contorná-lo: “é a situação humilhante da lei americana”.[9] Como influência exógena (fora do sistema), Lambert apontava a educação legal, toda estruturada com base no “método do caso”, o que conferia um especial relevo às decisões dos tribunais; como influência endógena, apontava a relevância assumida pelo art. 1o, Seção 10, § 1o, da Constituição de 1787, que vedava aos Estados a edição de leis que prejudicassem as obrigações assumidas nos contratos, e, acima de tudo, o papel assumido pelas dez Emendas que integravam o Bill of Rights.[10] Nesse particular, a “interpretação fundante” dispensada à due process clause, em sua conhecida vertente substantiva, passou a permitir o julgamento da racionalidade e da oportunidade das leis,[11] terminando por agigantar a intromissão dos tribunais na seara do Legislativo, merecendo especial menção a postura refratária à legislação social[12] e a invalidação das leis contra os trusts.[13] Os constantes conflitos com o Legislativo diminuíram a popularidade do Judiciário, levando à discussão de propostas sobre a possível deposição dos juízes pelo sufrágio universal (recall), o que chegou a ser implementado nas Constituições do Oregon (1908) e de alguns outros Estados, deflagrando uma grande agitação na sociedade norte-americana.[14] Ainda merece menção o apelo público contra as decisões judiciais promovido pelo Presidente Roosevelt, em 1911, que sugeria fossem elas submetidas a um recall.[15] Estabelecendo um paralelo com o direito francês, Lambert voltou a realçar a sua aderência a um positivismo clássico que mantinha totalmente apartados os momentos de criação e de aplicação da norma, o que pode ser facilmente constatado na sua afirmação de que a “construção americana” se distinguia da “interpretação francesa”.[16]

Apesar das críticas ao “governo dos juízes”, Prélot e Boulouis afirmam que o controle de constitucionalidade norte-americano e a formação do parlamento inglês foram, em termos de organização político-estatal, as contribuições mais importantes para a humanidade.[17]

A franca expansão da jurisdição constitucional e a crescente politização da Justiça exigem reflexões sobre a sua coexistência, no Estado de Direito, com as distintas estruturas estatais de poder. Afinal, existem balizamentos à atuação do Tribunal Constitucional? O embate com agentes políticos escolhidos pelo voto popular necessariamente redundará na conclusão de uma carência de legitimidade do Tribunal? A referida coexistência entre as estruturas de poder será facilitada com a instituição de mecanismos de contenção ao ativismo judicial? Conquanto seja evidente que tais questões apresentam densidade e importância que em muito superam os limites destas breves linhas, cremos que sua elaboração contribuirá, ao menos, para realimentar o debate de longa data travado pela doutrina.

  1. A Expansão da Jurisdição Constitucional

Num primeiro momento, seria possível afirmar que, em Estados de reduzida tradição democrática, nos quais ainda não está sedimentada a ideologia participativa, os tribunais assumiriam uma singular importância na preservação do equilíbrio institucional e na manutenção da atuação estatal em moldes compatíveis com as opções políticas fundamentais traçadas na Constituição. Esse raciocínio, embora correto in abstracto, torna-se de difícil aceitação quando transposto para o plano concreto, máxime quando tomamos o modelo norte-americano como paradigma: aqui, a intensa participação da Suprema Corte na vida institucional é contrastada com a existência de um sólido alicerce democrático, em que avultam a liberdade de expressão e uma intensa fiscalização popular. Em sentido diverso, sendo o francês o sistema utilizado como paradigma, o raciocínio já se mostrará correto, pois tal sistema, democrático na essência, é tradicionalmente refratário a uma expansão dos poderes dos órgãos jurisdicionais: somente admitindo, até há poucos anos, o controle prévio de constitucionalidade, realizado pelo Conseil Constitutionnel, órgão estranho à estrutura dos tribunais,[18] e ainda adotando um sistema de jurisdição dúplice, afastando dos tribunais comuns a análise de questões de interesse da Administração. Como se percebe, referido raciocínio, longe de assumir os contornos de uma regra, não chega a ultrapassar os rabiscos de uma tênue reflexão: debilidade democrática e incremento da atuação jurisdicional não guardam entre si uma necessária relação de causa e efeito.

Não se pode negar, no entanto, que a franca expansão da jurisdição constitucional,[19] não obstante a diversidade dos modelos utilizados, é, em linha de princípio, refratária à crítica que a fórmula “governo dos juízes” por si resume. O processo constitucional deve ser concebido como instrumento de execução da Constituição, de defesa do direito constitucional e de garantia da coerência do ordenamento jurídico em relação a ela:[20] com a jurisdição constitucional, “a Constituição se juridifica e judicializa”.[21]

A existência de um texto escrito, de cunho estrutural e caráter fundante, torna necessária a existência de um órgão que vele pelo respeito à supremacia constitucional, evitando que espécies normativas derivadas terminem por se sobrepor ao seu próprio fundamento de validade.[22] Objeta-se, no entanto, que a norma constitucional não é um mero “fato objetivo”, a ser simplesmente “constatado”;[23] em verdade, ela inevitavelmente assumirá os contornos que lhe sejam dados pelo Tribunal, instância última de controle. Não é por outra razão que a questão do excessivo poder dos órgãos jurisdicionais inevitavelmente retorna à ordem do dia, o que costuma ocorrer sempre que o Tribunal Constitucional transita da autocontenção (self-restraint) para uma postura ativista (ativism), avançando em matérias que, teoricamente, poderiam ser enquadradas sob a epígrafe da liberdade política dos órgãos legislativos e administrativos.[24]

A compreensão dessas zonas de tensão exige sejam previamente identificadas as causas que conduziram à sua formação. Nessa perspectiva, é possível afirmar que a Justiça, longe de ser concebida como uma força exógena ao sistema democrático, nele está ínsita, atuando como elemento de recomposição da normalidade (almejada), o que permite sejam contornadas as deficiências estatais.[25] Esse papel é especialmente sentido quando constatamos que o paradigma do Estado Democrático de Direito está intimamente associado à função transformadora do direito: a Constituição se ajusta a essa funcionalidade e deixa de ser vista como um mero instrumento de aferição da “parametricidade formal”.[26] A lei, em não poucos aspectos, volta-se à operacionalização dos objetivos constitucionais, não mais se situando numa esfera de liberdade política imune a todo e qualquer referencial de controle.

Embora não seja este o momento adequado a uma análise do debate há muito travado entre substancialistas e procedimentalistas,[27] é inegável que os contornos de muitas Constituições contemporâneas, especialmente nos Estados de “modernidade tardia”,[28] longe de retrair, estimulam a expansão da jurisdição constitucional. Constituições como a brasileira de 1988, de contornos dirigentes e excessivamente impregnados pela moralidade política, além de serem submetidas a constantes reformas (mero consectário da alternância das forças políticas no poder), ensejam uma intensa procura pelo Judiciário em busca da concretização dos valores substanciais que albergam. A frequente positivação de direitos de indiscutível relevância para o homem (v.g.: os direitos sociais) e a imposição de restrições à sua supressão evidenciam uma carga axiológica que não pode ser desconsiderada, tratando-se de clara manifestação de um modelo substancialista, indicativo da importância assumida pelo Judiciário nesse contexto.    

Constatadas a ineficiência da organização estatal e a correlata ineficácia dos mecanismos democráticos (v.g.: o voto) em contorná-la, não restará outra opção ao cidadão senão recorrer aos órgãos jurisdicionais, cuja atuação é precipuamente direcionada pelo direito, não por um ideário político. Os sistemas jurídico e político, apesar de ontologicamente separados, mantêm um intenso intercâmbio, permitindo que (a) os tribunais, observadas as balizas estabelecidas pelo sistema político, profiram decisões que assumam uma feição politicamente inovadora e (b) as instituições representativas, observados os limites impostos pelo direito, criem um direito novo.[29]

  1. A judicialização da política e a politização do Judiciário  

Não se deve prestigiar uma concepção restritiva de democracia, com contornos sobrepostos às instituições representativas e à vontade da maioria: a democracia deve assumir uma perspectiva mais ampla, estendendo-se à proteção da minoria, o que impedirá seja ela oprimida pela maioria ou alijada do processo político.[30] A política, assim, em não poucos aspectos, passa a ser vista com as lentes do direito: é o que se tem denominado de “judicialização da política”.[31] De qualquer modo, essa ampliação da atuação dos órgãos jurisdicionais não deve ser concebida como uma espúria intervenção em seara alheia, importando numa paulatina absorção da política (e da liberdade valorativa que lhe é inerente) pelo direito. Trata-se de um reflexo inevitável da expansão do Estado[32] e do aumento da confiança dos cidadãos, que alteram o palco de suas manifestações na medida em que identificam a ineficiência daqueles que detêm a sua representação política.[33] Com isto, não se tem propriamente uma transferência da soberania do povo para os juízes - concebidos como técnicos irresponsáveis e independentes -, mas, sim, a divisão de expectativas entre os distintos atores estatais, cada qual com sua importância na preservação do bem comum.[34] O regular funcionamento do sistema democrático não significa, necessariamente, a satisfação de todas as aspirações do cidadão, em especial daquelas que encontrem amparo na Constituição, o que explica o aumento da confiança depositada na Justiça sempre que se intensifique a ineficiência das instituições políticas.[35]

A atuação judicial, assim, há muito se desprendeu do arquétipo traçado por Montesquieu[36] e acolhido por Hamilton, que considerava o judiciário “incomparavelmente mais fraco que os dois outros poderes”; afinal, “não tem nenhuma influência nem sobre a espada nem sobre a bolsa; nenhum controle nem sobre a força nem sobre a riqueza da sociedade, e não pode tomar nenhuma resolução ativa”.[37] Essa “tradição conservadora”, que também afastava qualquer argumento antidemocrático contra a atuação dos tribunais, pois somente competia aos juízes velar pela supremacia da Constituição sobre as leis, terminou por ser superada com o constante desenvolvimento da atividade interpretativa dos juízes, que, segundo a crítica, podem “tomar o lugar que deveria ocupar a vontade popular”.[38] O papel dos órgãos jurisdicionais no delineamento da norma constitucional e os avanços promovidos no judicial review tornam evidente que o Judiciário não mais se compatibiliza com o apequenamento refletido no pensamento dos Founding Fathers.[39] Se Mirkine-Guetzévitch, nas primeiras décadas do século XX, já detectava a tendência ao fortalecimento do Executivo em detrimento do Legislativo,[40] nos albores do século XXI, não mais se duvida da importância do Judiciário na preservação da harmonia do sistema. Daí se dizer que o Supremo Tribunal é “um órgão jurisdicional e uma instituição política”, formando com o Legislativo e o Executivo, em igualdade de condições, o que os norte-americanos denominam de “Governo”.[41]

A denominada “politização da justiça”, expressão cuja literalidade indicaria a prevalência de fatores ideológicos em detrimento do direito, não é necessariamente um efeito deletério da constante expansão da atuação judicial. A constatação decorre de três fatores: 1º) a politização dos juízes, diferentemente de sua “partidarização”,[42] não tem como consequência imediata o comprometimento de sua imparcialidade, sendo absolutamente normal que um juiz interado das vicissitudes políticas mantenha-se equidistante das partes – o importante, no dizer de Garapon,[43] é que abstenha-se de impor a sua vontade individual, dissociada dos padrões normativos vigentes; 2º) a inexistência de univocidade na interpretação da disposição normativa torna inevitável que o juiz, apesar de desenvolver a sua atividade valorativa com observância dos balizamentos fixados pelo programa da norma (texto normativo), encontre possibilidades de escolha diretamente proporcionais ao seu grau de politização, o que não se confunde com uma arbitrária contestação da lei; 3º) a politização não importa na assunção, pelos juízes, de tarefas da alçada exclusiva dos políticos, apresentando-se, em verdade, como um instrumento para a superação da ineficácia das estruturas políticas tradicionais.[44] Não é por outra razão que Loewenstein, afastando-se da classificação de Montesquieu, defendia que o judicial review norte-americano era “materialmente pertencente à categoria do controle político.”[45]

  1. Balizamentos na Atuação do Tribunal Constitucional

A frequente referência à atividade interpretativa do Tribunal Constitucional tem o nítido propósito de evidenciar a impossibilidade de serem criados padrões de conduta ex nihilo, totalmente alheios ao processo democrático. Na medida em que se acentue o distanciamento das disposições constitucionais, resultando na sua complementação ou correção, intensifica-se a ingerência de ingredientes políticos nas decisões do Tribunal, tornando inevitável a eclosão da crítica baseada na formação de um “governo dos juízes”.[46]    

Apesar da indiscutível relevância, a intensificação da atuação judicial há de sofrer balizamentos, evitando a paulatina absorção de competências afetas a outras esferas de poder, cuja margem de liberdade é inerente à própria representatividade que ostentam. É da própria essência do sistema que o Tribunal seja instado a valorar atos de cunho nitidamente político (em linha de princípio, qualquer ato emanado do Legislativo possui natureza política): o ponto nodal da temática, no entanto, é identificar a intensidade dessa intervenção, que deve necessariamente preservar as competências dos demais órgãos, limitando-se o Tribunal à desqualificação daqueles atos dissonantes da Constituição.

Um primeiro balizamento é a exigência de que o pronunciamento dos tribunais se dê no âmbito de um processo, o que necessariamente exigirá a provocação de um legitimado, afastando a atuação ex officio, e a delimitação do plano de análise, evitando a prolação de decisões genéricas. No que concerne à decisão propriamente dita, encontrar um ponto de equilíbrio entre autocontenção [47] e ativismo parece ser o mesmo que traçar uma linha limítrofe entre o que pode e o que não pode vir a ser considerado um governo dos juízes. Essa linha limítrofe, à evidência, não será traçada a partir de uma perspectiva abstrata, imune à realidade sociopolítica em que se projetará a decisão do Tribunal Constitucional. Na identificação do conteúdo da norma constitucional, paradigma de confronto no controle de constitucionalidade, o Tribunal interpretará o texto (programa da norma) a partir dos contornos da realidade (âmbito da norma): quanto maior a aproximação entre texto e realidade, menor será o sentimento de que a decisão usurpou a esfera política alheia.[48] O exercício moderado desses poderes permitirá seja preservada a crença de cada cidadão em sua segurança jurídica.[49]

Essa interação entre texto e realidade, que a cada dia assume uma dimensão mais ampla e intensa, reflexo necessário da abertura semântica das normas constitucionais e da crescente expansão das áreas de atuação do Estado,[50] abre um largo campo de expansão ao Tribunal Constitucional, exigindo equilíbrio e sensatez para evitar que, sob os auspícios da “guarda da Constituição”, não se venha a ferir um dos princípios que lhe são mais caros: o princípio democrático. Na vertente oposta, invocar os dogmas da democracia para negar aos juízes a possibilidade de analisar a compatibilidade de uma lei com a Constituição terminaria por sujeitar esta última às maiorias ocasionais, que nem sempre refletem a vontade popular, isto em razão da reconhecida crise de representatividade da classe política.[51] Um ordenamento jurídico baseado na soberania popular possui uma estrutura normativa que expressa essa vertente democrática, encontrando na Constituição o seu “espelho normativo essencial e primário”:[52] ao proteger a ordem constitucional, o Tribunal estará protegendo a soberania popular em sua mais intensa e importante manifestação.[53] A experiência política, aliás, sugere que democracia e constitucionalismo formam um excelente par, com a tendência de que um reforce o outro.[54]

O atuar do Tribunal será aceitável enquanto (e tão somente enquanto) suas decisões puderem ser argumentativamente reconduzidas ao liame que une texto e realidade, formando uma norma constitucional consentânea com a ordem de valores vigente na sociedade. Estruturando o seu raciocínio em etapas, o Tribunal permitirá a reconstrução e a adesão do “auditório” a cada uma dessas etapas.[55] Com isto, busca-se estabelecer uma diretriz de harmonização institucional, permitindo que a liberdade política dos órgãos legislativos e executivos coexista com o primado do direito e o relevante papel desempenhado pelos órgãos jurisdicionais, todos depositários dos legítimos anseios do cidadão. De qualquer modo, sempre que divisado um potencial conflito entre o Tribunal e a vontade da maioria, virá à tona a tensão entre justiça e democracia,[56] o que tem estimulado o debate em busca de soluções intermediárias, como um possível reenvio do padrão normativo à reapreciação do legislador.  

  1. A legitimidade das decisões do Tribunal Constitucional: uma breve referência

O constante aumento da importância dos Tribunais Constitucionais no Estado moderno frequentemente traz à tona a questão da legitimidade de suas decisões, temática de indiscutível amplitude e que deve ser abordada, ainda que de forma meramente introdutória. Lembrando o questionamento anteriormente posto: seria possível, num regime democrático, que os juízes fizessem sua vontade substituir-se à vontade popular?

Num primeiro plano, cumpre dizer que a inter-relação entre o texto da norma (programa da norma) e a realidade (âmbito da norma) contribui para demonstrar a distinção entre constitucionalidade e legitimidade.[57] Será considerada constitucional a norma encontrada a partir de um processo de concretização que se desenvolva com observância do balizamento fixado pelo texto constitucional. A norma, no entanto, apesar de constitucional, pode não refletir um comando que esteja em harmonia com determinados referenciais de aceitação, como os valores aceitos pela sociedade, deles distanciando-se. Nesse caso, a realidade, conquanto direcionadora do processo de concretização, não foi corretamente apreendida, ensejando o surgimento de uma norma dela dissonante. A possibilidade de a norma constitucional distanciar-se dos valores sociais bem demonstra a pertinência da distinção inicialmente referida, pois distintos são os elementos de fundamentação de cada qual.

A constitucionalidade da norma, em sentido lato, consubstancia um conceito formal, enquanto a legitimidade reflete um conceito material. Em outras palavras, a legitimidade é um plus em relação à compatibilidade da norma com o texto constitucional: reflete um relacionamento racional entre o comando emitido e um referencial de aceitação, como o consenso da coletividade.[58]

A textura essencialmente aberta do texto constitucional, a frequente colisão entre direitos fundamentais, a recorrente realização de juízos de ponderação e o controle de constitucionalidade tão somente exemplificam algumas situações em que a atividade da jurisdição constitucional ensejará debates quanto à sua legitimidade. Tal atividade provocará uma inevitável tensão entre dois valores indispensáveis ao correto funcionamento do sistema constitucional: (a) o primeiro indica que o poder de decisão numa democracia deve pertencer aos eleitos, cuja responsabilidade pode ser perquirida, e, (b) o segundo, a existência de um meio que assegure a supremacia e a unidade da Constituição, mesmo quando maiorias ocasionais, refletidas no Executivo ou no Legislativo, oponham-se a ela.[59]

É importante observar que o equilíbrio propiciado pela separação dos poderes, de indiscutível importância na salvaguarda dos indivíduos face ao absolutismo dos governantes, também contém os excessos da própria democracia. O absolutismo ou, mesmo, o paulatino distanciamento das opções políticas fundamentais fixadas pelo constituinte pode igualmente derivar das maiorias ocasionais, as quais, à mingua de mecanismos eficazes de controle, podem solapar as minorias e comprometer o próprio pluralismo democrático. Por tal razão, não se deve intitular uma decisão judicial de antidemocrática pelo simples fato de ser identificada uma dissonância quanto à postura assumida por aqueles que exercem a representatividade popular. Não se afirma, é certo, que a democracia seja algo estático, indiferente às contínuas mutações sociais. No entanto, ainda que a vontade popular esteja sujeita a contínuas alterações, o que resulta de sua permanente adequação aos influxos sociais, refletindo-se nos agentes que exercem a representatividade popular, ela deve manter-se adstrita aos contornos traçados na Constituição, elemento fundante de toda a organização política e condicionador do próprio exercício do poder.

A democracia constitucional, como defende Rawls, deve ser concebida de forma dualista: o poder constituinte se distingue do poder ordinário, do mesmo modo que a lei suprema do povo da lei ordinária dos órgãos legislativos, o que importa na rejeição da soberania parlamentar.[60] Se o tribunal constitucional desempenha o papel de defesa da Constituição, evitando seja ela corroída pela legislação de maiorias transitórias, não se pode intitulá-lo de antidemocrático. Embora seja antidemocrático no que se refere à lei ordinária, não o é em relação à Constituição, pois a autoridade superior do povo lhe dá sustentação. Basta que suas decisões estejam “razoavelmente de acordo com a Constituição em si, com as emendas feitas a ela e com as interpretações politicamente determinadas”. Também a Constituição, fruto de um processo constituinte democraticamente articulado, é uma forma de manifestação da soberania popular.[61]

Como vimos, não merece acolhida a tese de uma possível supremacia da jurisdição constitucional em relação aos demais órgãos de soberania. As suas vocações de mantenedora da “paz institucional” e de garantidora da preeminência da ordem constitucional assumem especial importância no Estado moderno, no qual aumenta a importância do Estado em relação ao indivíduo, com a correlata dependência deste para com aquele, exigindo um controle eficaz dessa relação.[62] O dogma da separação dos poderes não pode receber leituras parciais. Em outras palavras, não pode permanecer indiferente aos influxos trazidos pela supremacia da Constituição e pela necessidade de ser protegida uma dada esfera jurídica dos cidadãos (rectius: os direitos fundamentais) contra a omissão ou o avanço desmedido do aparato estatal. A própria força operativa desses influxos vê-se condicionada à atuação da jurisdição constitucional, evitando venham a elastecer o rol das utopias não realizadas.[63]

No direito norte-americano, sempre que suscitado o debate sobre a legitimidade da judicial review, é invocada a doutrina de Alexander Bickel, que delineou, com perfeição, os aspectos básicos da controvérsia.[64] Segundo o autor, sempre que a Suprema Corte declara a inconstitucionalidade de um ato legislativo, ela ocupa uma posição contrária à da maioria, claro indicativo de que a judicial review é uma instituição anômala na democracia norte-americana, assumindo contornos contramajoritários.[65] Em decorrência dessa constatação, a colidência entre democracia e judicial review somente é passível de ser atenuada, não eliminada. Essa solução harmonizadora será alcançada na medida em que interpretação e aplicação das disposições constitucionais se tornarem fontes de expressão da vontade popular. Os tribunais, diferentemente dos legisladores e administradores, têm uma maior capacidade para identificar os valores sedimentados em dada sociedade, possuindo o preparo intelectual necessário à sua compatibilização com os fins públicos.[66]

Tomando-se como referencial a teoria de Bickel, constata-se que o debate apresenta múltiplas variantes, cada qual procurando justificar a aproximação entre judicial review e vontade popular de uma maneira específica.

Principiando pelo debate entre “originalistas” e “não originalistas”, pode-se afirmar que os primeiros, francamente refratários ao ativismo judicial, defendem a necessidade de se preservar as fundações (foundations) da Constituição, que deve ser interpretada em harmonia com o seu intento original, mantendo-se fiel ao pensamento dos seus criadores (framers) e à vontade da maioria do presente. Ao juiz caberia tão somente a realização das investigações relevantes ao caso concreto, descobrindo o sentido originário do texto constitucional: o “argumento central” dessa teoria é o de que “não é preciso ir além da Constituição” para entendê-la, nela sendo encontrados os significados que no momento de sua aplicação não se mostrem claros.[67] Essa teoria teria a vantagem de evitar que os juízes substituíssem o direito por suas próprias predileções, terminando por inovar na ordem jurídica.[68] De acordo com os seus defensores, contribuiria para evitar um “governo dos juízes”, agentes que passariam a atuar como meros autômatos, transplantando para o plano da realidade uma decisão previamente tomada numa perspectiva abstrata, isto sem olvidar que manteria os tribunais adstritos aos contornos da Constituição, preservando o respeito popular.[69] Os valores encampados pelo legislador deveriam ser aceitos sempre que não fosse constatada a sua manifesta colidência com as opções feitas quando da edição da Constituição.

Em sentido contrário à tese originalista, tem-se a constatação de que Estado e sociedade assumem contornos nitidamente prospectivos, sendo evolutivos por natureza, o que bem demonstra a impossibilidade de as relações sociopolíticas serem reguladas por padrões normativos que se mostrem indiferentes à realidade e à ordem de valores vigentes no momento de sua aplicação. Uma ideologia dinâmica de interpretação constitucional torna inevitável que o conteúdo da norma deixe de apresentar uma relação de superposição com o respectivo texto constitucional, exigindo seja ela compatibilizada com todas as vicissitudes que se formaram a partir da promulgação da Constituição. A atividade interpretativa do juiz não pode sofrer um balizamento tal que elimine a sua liberdade valorativa e o amarre a um passado muitas vezes longínquo e esquecido. Para os não-originalistas, a Constituição se integra à realidade, não exaurindo o seu conteúdo normativo em aspectos internos e subalternos ao seu texto, de todo indiferentes ao entorno social. Fatores internos e externos se integram de modo a desvendar a norma mais consentânea com o momento de aplicação da Constituição.

John Hart Ely,[70] por sua vez, em obra de indiscutível profundidade e coerência lógica,[71] começa por delinear aspectos favoráveis e desfavoráveis das teorias que Grey denominou de “interpretativista” e “não-interpretativista” (ou “literalismo” e “não-literalismo”). A teoria interpretativista, na medida em que se restringe à análise do texto constitucional e dos valores ali contemplados, apresenta uma maior adequação às concepções usuais de operação do direito e à teoria democrática, reduzindo a discricionariedade judicial e concentrando nos órgãos que detêm a representação democrática as opções políticas fundamentais. Os interpretativistas defendem que a invalidação de qualquer ato dos órgãos de soberania deve resultar de uma dedução cuja premissa fundamental seja claramente encontrada na Constituição. Quanto aos aspectos negativos, tem-se que o interpretativismo também se distanciaria da democracia ao negar às gerações futuras o direcionamento de suas vidas, isto sem olvidar que a abertura semântica de muitas normas constitucionais (“disposições de sentido aberto”, no dizer de Ely)[72] torna inevitável que as decisões judiciais adotem parâmetros diversos, que não aqueles meramente textuais.

Para a teoria não-interpretativista, caberia aos juízes, de forma consentânea com a vida social, definir os “valores fundamentais” referidos por Bickel[73] e que poderiam ser albergados pela Constituição.[74] Para os realistas, esses valores seriam encontrados pela própria apreensão do juiz, que empregaria os únicos critérios reconhecidos como reais pelo direito. Como os valores pessoais prestigiados por cada juiz assumem contornos voláteis, ficando à mercê de contingências extremamente variáveis, Ely objeta que essa doutrina carece da objetividade e da certeza inerentes ao direito. Para os jusnaturalistas, deveriam ser utilizados os valores imutáveis inerentes à concepção de direito natural, o que é desaconselhável em razão da falta de objetividade e da dificuldade de se reconhecer uma verdade ética com contornos absolutos e constantes. Quanto aos “princípios neutrais” (“neutral principles”), apesar de defenderem uma neutralidade dos juízes, que deveriam aplicar um mesmo princípio aos casos similares, não podem assumir o conteúdo substantivo que pretendem, pois a neutralidade na aplicação não propiciaria uma fonte de conteúdo substantivo. A descoberta dos “valores fundamentais” a partir da aplicação do “método da razão familiar ao discurso da filosofia moral”, hipótese sustentada por Bickel, é combatida por Ely com os argumentos de que a razão só pode conectar premissas à conclusão, não dizendo nada por si, e que cada indivíduo, em especial das classes mais elevadas, tem a sua própria filosofia moral, o que confere ao argumento acentuados contornos elitistas e antidemocráticos. A utilização da tradição, outro critério sugerido por Bickel, é combatido face à sua debilidade no fornecimento de respostas suficientes e inequívocas, também perdendo em objetividade.

Além dessas considerações, Ely analisa a tese de que os valores sociais a serem considerados pelos juízes devem ser aqueles “amplamente compartilhados na sociedade”, refletindo a ideia de “consenso”.[75] A utilização dos valores que se refletem no consenso, extraídos de uma opinião majoritária, traz aspectos positivos ao contribuir para afastar o subjetivismo do juiz e render homenagem ao princípio democrático. Opondo-se à tese, observa Ely que, se a função do consenso é proteger o direito da maioria, melhor seria seguir o processo legislativo, certamente mais apto a alcançar esse objetivo que o processo judicial; por outro lado, entendendo-se que sua função é proteger a minoria contra a ação da maioria, ter-se-ia a incongruência de empregar os juízos de valor da maioria como mecanismo de proteção da minoria.

Conclui Ely que independentemente do referencial utilizado, não é tarefa dos tribunais definir e impor valores, acrescendo ser infrutífera a busca de valores que preencham a textura aberta das disposições constitucionais sem tornar o Tribunal um órgão legislativo. Por outro lado, uma postura interpretativista, tomando as disposições constitucionais como um espaço fechado, também seria incapaz de suprir o caráter aberto de muitos dos termos utilizados. Para solucionar esse impasse, sustenta que a melhor construção é aquela desenvolvida pela Suprema Corte norte-americana sob a presidência de Earl Warren, passando a analisá-la. Em apertada síntese, pode-se afirmar que o Tribunal desenvolveu sua jurisprudência na sedimentação da observância dos direitos fundamentais, em especial no processo criminal; na qualificação dos eleitores e no delineamento das circunscrições eleitorais; e na implementação do princípio da igualdade (equal protection clause), particularmente em relação aos negros e estrangeiros. O Tribunal assegurou a abertura do processo político e corrigiu algumas discriminações contra as minorias, terminando por estruturar uma razoável teoria da representação política. Com isto, diversamente da teoria que apregoa a imposição judicial dos “valores fundamentais”, essa tese (“representation-reinforcing orientation”), ao evitar que os juízes se substituam aos representantes eleitos, não só é compatível com a democracia representativa como a reforça.[76]    

Alexy,[77] discorrendo sobre a competência do Tribunal Constitucional, em muito contribui para a elucidação da tensão dialética acima enunciada. Segundo ele, “a chave para a reso­lu­ção é a dis­tin­ção entre a repre­sen­ta­ção polí­ti­ca e a argu­men­ta­ti­va do cidadão”. Estando ambas submetidas ao princípio fundamental de que todo o poder emana do povo, é necessário compreender “não só o par­la­men­to mas tam­bém o tri­bu­nal cons­ti­tu­cio­nal como repre­sen­ta­ção do povo”. Essa representação, no entanto, se manifesta de modo distinto: “o par­la­men­to repre­sen­ta o cida­dão poli­ti­ca­men­te, o tri­bu­nal cons­ti­tu­cio­nal argu­men­ta­ti­va­men­te”, o que permite afirmar que este, ao representar o povo, o faz de forma “mais idea­lís­ti­ca” que aque­le. Ao final, realça que o cotidiano parlamentar oculta o perigo de que faltas graves sejam praticadas a partir da excessiva imposição das maiorias, da preeminência das emoções e das manobras do tráfico de influências, concluindo que “um tri­bu­nal cons­ti­tu­cio­nal que se diri­ge con­tra tal não se diri­ge con­tra o povo, senão, em nome do povo, con­tra seus repre­sen­tan­tes polí­ti­cos”.

A argumentação jurídica permite seja aferida a legitimidade e controlada a racionalidade das decisões proferidas,[78] tendo especial relevância nos casos difíceis (hard cases), considerados como tais aqueles que admitem uma pluralidade de soluções, todas lícitas e reconduzíveis ao programa da norma. Quanto maior a abertura semântica da disposição normativa, mais incisivo o papel criativo dos tribunais e mais acentuado o ônus que recai sobre a argumentação a ser desenvolvida. Esse aspecto foi realçado por Dworkin, ao afirmar (referindo-se ao common law) que a construção (construction) de regras anteriormente não reconhecidas não confere aos juízes uma liberdade idêntica à do legislador: as decisões devem ser tomadas com base em princípios (principles), não em políticas (policies), indicando os argumentos que levam os juízes a crer que as partes têm novos direitos e deveres jurídicos.[79]

O dever de fundamentação das decisões judiciais busca demonstrar a sua correção, elaborando uma espécie de blindagem às críticas que se voltem contra o padrão de justiça nelas refletidos. Trata-se da “racionalidade ‘externa’ ou ‘extrínseca’ do raciocínio jurídico”, apresentando extensão e complexidade sensivelmente maiores que a “fundamentação meramente dedutiva”, própria do modelo subsuntivo.[80]

Conferindo-se à Constituição a condição de elemento polarizador das relações entre os órgãos de soberania, torna-se evidente que os mecanismos de equilíbrio por ela estabelecidos não podem ser intitulados de antidemocráticos. Além disso, a ausência de responsabilidade política dos membros da jurisdição constitucional não tem o condão de criar um apartheid em relação à vontade popular. Na linha de Bachof, o juiz não é menos órgão do povo que os demais, pois, mais importante que a condição de mandatário do povo, é a função desempenhada “em nome do povo”,[81] aqui residindo a força legitimante da Constituição. Essa fórmula, aliás, mereceu consagração expressa no art. 202, no 1, da Constituição portuguesa: “os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”. [82]         

Note-se que o dever de respeito à Constituição faz nascer, como contraponto, uma espécie de direito difuso à sua efetiva observância,[83] que se espraia entre todos os cidadãos, autorizando e legitimando a atuação do Tribunal Constitucional.

  1. Vetores de contenção ao ativismo judicial

A necessidade de coexistência e equilíbrio entre as noções de interpretação constitucional, democracia participativa e legitimidade democrática torna inevitável que o próprio sistema ofereça mecanismos de recomposição da normalidade institucional. Nessa perspectiva, as decisões do Tribunal Constitucional, além de encontrarem na Constituição um balizamento natural, podem ser diretamente atingidas pelas opções políticas do poder reformador ou, indiretamente, pela legislação infraconstitucional.

Apesar de sua posição de preeminência na interpretação constitucional, os atos do Tribunal Constitucional auferem a sua força e vitalidade na ordem constitucional, fundamento e limite de sua atividade. Incumbe a ele atualizá-la e concretizá-la, atuando como intérprete indiscutível e definidor do conteúdo constitucional, o que permite qualificá-lo como “poder constituído constituinte”.[84] A Constituição somente diz o que o seu intérprete supremo diz, não sendo absurdo afirmar que sua vontade não é essencialmente distinta daquela emanada do constituinte, já que atua como o seu legítimo porta-voz. Apesar dessa indiscutível liberdade valorativa, o Tribunal não deixa de ser poder constituído, devendo render obediência à Constituição, ao que ela é, não àquilo que o Tribunal gostaria que fosse. Nessa perspectiva, quanto maior a abertura semântica das normas constitucionais, maior será a liberdade do Tribunal na “revelação” da vontade constituinte.

Esse dever de respeito à ordem constitucional é igualmente constatado na imperativa observância das normas emanadas do poder reformador, que deve render estrita obediência aos limites fixados pelo constituinte. A adstrição do Tribunal à vontade popular, devidamente refletida no delineamento das normas constitucionais, erige-se como eficaz mecanismo de controle das decisões que destoem dos anseios da coletividade, permitindo sejam elas retificadas ou superadas por uma reforma constitucional. Ao questionamento “qui custodict custodem?”, responde-se: o poder reformador.[85]

O denominado “direito constitucional jurisprudencial”, em verdade, evidencia um instrumento de aplicação da Constituição, concretizando-a. Instrumento e objeto de aplicação diferem entre si pelas condições de produção e pela força derrogatória: diferentemente da reforma constitucional, a decisão do Tribunal, apesar de interpretar a Constituição, não pode modificá-la (ao menos de forma direta, dissociada do processo interpretativo).[86] O fato de somente a reforma constitucional poder superar a decisão do Tribunal Constitucional que detectou o vício de inconstitucionalidade numa lei não decorre da natureza constitucional da decisão que o reconheceu, mas, sim, porque tal decisão concretiza a Constituição em vigor: estivessem no mesmo nível a decisão do Tribunal e a norma constitucional em que se apóia, não seria possível uma reforma constitucional.[87]

Essa solução, no entanto, estará normalmente adstrita às hipóteses em que a interpretação do Tribunal destoar de uma opinião verdadeiramente generalizada, não podendo ser utilizada com grande frequência, de modo a contornar toda e qualquer decisão tomada. Não bastasse o elevado número de decisões, o que dificulta a constante utilização do processo de reforma constitucional, normalmente complexo e demorado, ainda se deve lembrar que a própria disposição emanada do poder reformador estará sujeita à interpretação do Tribunal, sendo factível a possibilidade de se obterem significados distintos daqueles imaginados pelos artífices da reforma.

 Além dos mecanismos de cunho constitucional, ainda merecem menção os de natureza infraconstitucional, vale dizer, a utilização da legislação infraconstitucional para esvaziar ou tão somente diminuir a perspectiva de efetividade das decisões do Tribunal Constitucional. Em situações desse tipo, o “alvo” são aspectos circunstanciais à decisão do Tribunal, dificultando o surgimento de um quadro favorável à sua implementação.[88] Pode-se afirmar que “soluções” desse tipo geram evidente “inquietude” em relação à subsistência da própria jurisdição constitucional, que pode ter subtraído o caráter imperativo de suas decisões.[89]

A análise realizada, como se percebe, manteve-se adstrita aos mecanismos de equilíbrio institucional alicerçados no sistema e num mínimo de higidez moral, passando ao largo daqueles que afetem o próprio funcionamento do Tribunal,[90] comprometendo a sua independência ou impondo constrangimentos de ordem pessoal aos seus membros.[91] Reações dessa natureza assumem um colorido meramente circunstancial, sendo normalmente movidas por paixões momentâneas.

Epílogo. A sedimentação do constitucionalismo, que se mostrou essencial à estruturação do Estado e à garantia dos direitos da pessoa humana, fez que a jurisdição constitucional terminasse por trilhar um caminho não passível de retorno. A relevância da Constituição reflete, em última ratio, a importância do Tribunal Constitucional. Por em dúvida a sua legitimidade significa por em dúvida a própria supremacia constitucional, terminando por abalar os alicerces fundamentais do Estado de Direito. De qualquer modo, deve-se reconhecer que o debate sobre os contornos e o alcance da norma constitucional inevitavelmente conduzirá a uma tensão dialética com a esfera de discricionariedade do legislador e a legitimidade democrática que lhe dá suporte, permitindo antever que o debate continuará a ser realimentado por teses e antíteses, estando longe de alcançar uma conclusão imune a críticas.

 

[1] “Un Probleme Majeur: Controle Jurisdictionnel des Lois et Príncipe de Democratie. Etude de Droit Comparé”, in Le Pouvoir des Juges, trad. de René David, Paris: Ed. Econômica, 1990, pp. 215/216.

[2] Em Eisenstadt vs. Baird (405 U.S. 438, 1972), o Supremo Tribunal norte-americano, por violação à “equal protection clause”, reconheceu a inconstitucionalidade de lei do Estado de Massachusetts que impunha tratamento desigual a pessoas casadas e solteiras em situação similar, tendo o Justice Burger realçado, em sua opinião dissidente, que o Tribunal “invadia seriamente” as prerrogativas constitucionais dos Estados ao substituir o juízo valorativo realizado pelos órgãos legislativos, o que lhe parecia ter ocorrido no caso.

[3] Cf. Peter Irons, A People’s History of the Supreme Court, New York: Penguin Books, 1999, pp. 294/306.

[4] Cf. Cappelletti, Un Probleme Majeur..., p. 219; e Hamon, Troper e Burdeau, “Manuel de Droit Constitutionnel”, 27ª ed., Paris: L.G.D.J, 2001, p. 263.

[5] Le gouvernement des juges…, p. 8.

[6] Le gouvernement des juges…, p. 8.

[7] Le gouvernement des juges…, p. 14.

[8] Le gouvernement des juges…, p. 16.

[9] Le gouvernement des juges…, p. 23.

[10] Le gouvernement des juges…, p. 38.

[11] Le gouvernement des juges…, pp. 51/59.

[12] Le gouvernement des juges…, pp. 67/91.

[13] Le gouvernement des juges…, pp. 138/176.

[14] Le gouvernement des juges…, pp. 94/95.

[15] Le gouvernement des juges…, p. 98.

[16] Le gouvernement des juges…, p. 130.

[17] Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 10ª ed., Paris: Dalloz, 1987, p. 239.

[18] Sobre a evolução do controle de constitucionalidade na França, vide Louis Favoreu et alii, Droit Constitutionnel, 6ª ed., Paris: Dalloz, 2003, pp. 255/273.

[19] Cf. Peter Häberle, Funktion und Bedeutung der Verfassungsgerichte in vergleichender Perspektive, in EuGRZ nº 22-23, p. 685 (685), 2005. Além dos sistemas básicos de controle de constitucionalidade (norte-americano ou difuso, austríaco ou concentrado e francês ou político), os Estados africanos oferecem interessantes variações, que costumam apresentar dissonâncias em relação aos modelos jurídicos adotados pelas potências colonizadoras. Mesmo nos Estados de colonização francesa e belga verifica-se a vinculação, sob distintas modalidades, da jurisdição constitucional à ordens judiciais comuns: a) atribuindo-a à instância suprema da ordem judiciária (Camarões, Senegal, Comores e Zaire); b) instalando uma “câmara constitucional” no âmbito dessa instância suprema (Costa do Marfim, Gabão, Marrocos e Mauritânea) ou mesma uma “seção constitucional” (Mali); c) constituindo o Tribunal Constitucional a partir da fusão de duas jurisdições supremas ordinárias, mais especificamente o Conselho de Estado e o Tribunal de Cassação, como ocorre em Ruanda; d) criando um Tribunal Constitucional orgânica e funcionalmente autônomo, como se verifica em Madagascar (Alto Tribunal Constitucional de Madagascar – instalado em 1975) e no Congo (Conselho Constitucional do Congo – instalado em 1984). Nos Estados de colonização inglesa, embora prevaleça a solução norte-americana do judicial review, já é divisada a criação de Tribunais Constitucionais (África do Sul – Constituição de 1996). Nos Estados de colonização espanhola ou portuguesa, verifica-se a adoção dos seguintes modelos: a) instalação de um órgão especializado, como o Conselho de Estado na Guiné Equatorial (1982), o Conselho Constitucional em Moçambique (Constituições de 1990 e 2004) ou o Tribunal Constitucional em Cabo Verde (Constituição de 1992); b) adoção do sistema de controle político da constitucionalidade das leis, a cargo do próprio parlamento (o sistema cabo-verdiano até 1992); c) omissão, pura e simples, da jurisdição constitucional (sistema moçambicano até 1990). Cf. Ould Bouboutt, Les Juridictions Constitutionnelles en Afrique, in AIJC vol. XIII, p. 31 (33/34), 1997; e Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 765/767.

[20] Cf. Dario Cavallari, Considerazioni sulla rilevanza della questione di legittimità costituzionale: una nozione ampia risolve le strettoie derivanti dalla sua incidentalità, in DS nº 4, p. 469 (473), 2002.

[21] Cf. Ignácio de Otto, Derecho Constituciona, Sistema de Fuentes, 2ª ed., 8ª reimp., Barcelona: Editorial Ariel, 2001, p. 36.

[22] Como advertia Rui Barbosa, com alicerce na doutrina norte-americana, outorgando-se tal atividade ao próprio legislativo, parte interessada, seria ele juiz em sua própria causa: “a preponderância, nesse caso, caberia sempre à lei contra a Constituição” [A Constituição e os Actos Inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal (arrazoado de 1893), 2ª ed., Rio de Janeiro: Flores & Mano, s/d].

[23] Cf. Hamon, Troper e Burdeau, Manuel..., p. 63.

[24] No direito francês, a posição assumida pelo Conselho Constitucional no célebre caso das “leis de nacionalização” (Decisões nos 132 DC, de 16/01/1982, e 139 DC, de 11/02/1982) suscitou ásperos debates quanto às dificuldades de conciliação entre justiça constitucional e democracia. Cf. Louis Favoreau, e Louis Philip, Les Grandes Décisions du Conseil Constitutionnel, 12a ed., Paris: Éditions Dalloz, 2003, pp. 457/499.

[25] Como observa Kimminich, uma “justiça independente somente é um corpo estranho nas chamadas democracias populares, isto é, nas ditaduras comunistas” [“A jurisdição constitucional...”, in RILSF nº 105, Janeiro-Março/1990, p. 283 (285)].

[26] Lenio Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica - Uma Nova Crítica do Direito, 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 103.

[27] Os substancialistas valorizam o conteúdo material das Constituições, atribuindo-lhes um papel diretivo, cabendo à lei operacionalizar a concretização dos vetores axiológicos que contemplam (v.g.: os direitos sociais). Com isto, o direito avança em esferas outrora afetas à liberdade política e o Judiciário assume um relevante papel na efetivação da Constituição. Cf. Tribe, Constitutional Choices, Cambridge: Harvard University Press, 1985, pp. 3/28; e Mauro Cappelletti, Juízes Legisladores? (Giudici Legislatori?), trad. de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, 1993, reimp. de 1999, pp. 40/42, 73/81 e 92/107. Os procedimentalistas, por sua vez, acentuam o papel instrumental da Constituição: ela estaria primordialmente voltada à garantia de instrumentos de participação democrática e à regulação do “processo” de tomada de decisões, com a consequente valorização da liberdade política inerente à concepção democrática. Apesar de reconhecerem a penetração de valores substantivos nesse processo, defendem que a sua importância é meramente secundária, não dirigindo o processo em si. Ao Judiciário, assim, caberia tão somente assegurar a observância desse processo, cabendo a cada geração estabelecer as bases axiológicas sobre as quais se desenvolverá. Cf. John Hart Ely Democracy and Distrust: a theory of judicial review, 11ª ed., Cambridge: Harvard University, 1995, pp. 88 e ss.. Como é intuitivo, o debate inevitavelmente conduz à questão da legitimidade política do Judiciário para concretizar os valores substanciais contemplados na Constituição. A necessidade de se preservar o equilíbrio entre os vetores de efetividade e estabilidade constitucionais, legitimidade democrática e acesso à justiça exige moderação no delineamento da Constituição. Nessa linha, é de todo aconselhável sejam evitadas posições extremadas, como o minimalismo constitucional, levando a extremos a mobilidade democrática, e o dirigismo absoluto (“maximalismo constitucional”), engessando o evolver do pensamento sociopolítico.

[28] Gomes Canotilho, esclarecendo a evolução do seu pensamento quanto ao constitucionalismo dirigente e à relativização do conceito, ainda defende a sua utilidade nos Estados de “modernidade tardia”: a Constituição dirigente não “morreu”, o que “morreu” foi a “’Constituição metanarrativa’ da transição para o socialismo e para uma sociedade sem classes” (“Brancosos” e Interconstitucionalidade – Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional, Coimbra: Edições Almedina, 2006, pp. 34/35, 154/156). Com isto, esclareceu entendimentos equivocados, em especial na doutrina brasileira, quanto ao alcance do prefácio à 2ª edição da obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra: Coimbra Editora, 2001.    

[29] Cf. Celso Fernandes Campilongo, O Direito na Sociedade Complexa, São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 76.

[30] Cf. Hamon, Troper e Burdeau, Manuel..., p. 62.

[31] Cf. Antoine Garapon, O juiz e a democracia – O guardião das promessas (Le Gardien des Promesses), trad. de Maria Luiza de Carvalho, Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 25. Segundo o autor, a “judicialização da política” é um claro indicador de que a justiça teria assumido a condição de “último refúgio de um ideal democrático desencantado”.

[32] Para Cappelletti, num sistema democrático de “checks and balances”, a expansão do papel do Judiciário é o necessário contrapeso à paralela expansão dos “ramos políticos” do Estado moderno [Juízes Legisladores? (Giudici Legislatori), trad. de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, reimp. de 1999, p. 19]

[33] Cf. Marcus Faro de Castro, “O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização da Política”, in RBCS vol. 12, nº 34, Junho/1997, p. 147 (148). Sobre a necessidade de “extirpar os atos de governo da paisagem jurídica”, isto por refletirem uma esfera imune ao controle dos órgãos jurisdicionais, vide Josiane Auvret-Finck, Les actes de gouvernement, irréductible peau de chagrin?, in RDPSP nº 1, p. 131 (173/174), 1995.

[34] Dworkin insuge-se contra a discricionariedade judicial com alicerce em dois argumentos básicos: (1) no plano democrático, a criatividade judicial violaria o princípio da separação dos poderes, que concentra no legislativo o poder de editar os atos normativos; e (2) no plano liberal, afrontaria a vedação de legislar ex post facto, pois resultaria na elaboração de uma norma jurídica a ser aplicada a fatos anteriores a ela. Além disso, enquanto o legislador toma suas decisões com base em argumentos de política (arguments of policy), o juiz deve utilizar argumentos de princípio (arguments of principle) - Taking Rights Seriously, Massachusetts: Harvard University Press, 17ª imp., 1999, pp. 68/71 e 82/86). Essa construção é analisada por Sandra Martinho Rodrigues, A Interpretação Jurídica no Pensamento de Ronald Dworkin (Uma Abordagem), Coimbra: Livraria Almedina, 2005, pp. 16/17; e Alfonso García Figueroa, Princípios y positivismo jurídico, Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 1998, pp. 268/289. Não compactuamos com a construção de Dworkin por três razões: (1) a atuação judicial está integrada ao sistema democrático; (2) as fases de criação e aplicação da norma se aproximam e interpenetram, não havendo qualquer violação à separação dos poderes na atividade judicial; e (3) como a norma somente pode ser obtida ao final do processo de concretização, sendo da sua própria essência o aperfeiçoamento de conteúdo no momento da aplicação, não há propriamente uma norma ex post facto, pois o “programa da norma” era preexistente.

[35] No Brasil, a constante postulação de direitos prestacionais, em ações individuais ou coletivas, é um claro indício do desencanto com as instituições políticas e da confiança depositada no Judiciário. Nessas demandas, são normalmente contestadas ações (melhor dizendo: omissões) pretensamente baseadas na discricionariedade político-administrativa do Estado na implementação dos direitos sociais, mais especificamente daqueles que tangenciam o denominado “mínimo existencial”. Exemplo dessa tendência é o reconhecimento, pelo Judiciário, do direito à medicação, ainda que não haja lei específica regulamentando o “direito à saúde” previsto no art. 196 da Constituição de 1988 ou dotação orçamentária para esse fim (RE nº 195.192-3/RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 22/02/2000, DJU de 31/03/2000; e RE nº 273.834/RS, rel Min. Celso de Mello, j. em 31/10/2000, DJU de 02/02/2001). Cf. Marcos Maselli Gouvêa, O Controle Judicial das Omissões Administrativas, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.

[36] Cf. Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución (Verfassungslehre), trad. de Alfredo Gallego Anabitarte, Barcelona: Ediciones Ariel, 1964, p. 67.

[37] Madison, Hamilton e Jay, Os Artigos Federalistas (The Federalist Papers), trad. de Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1993, art. nº LXXVIII (Hamilton).

[38] Cf. Roberto Gargarella, La justicia frente al gobierno, Barcelona: Editorial Ariel, 1996, p. 59.

[39] Observa Tribe que as anotações da Convenção da Filadélfia sugerem a alguns estudiosos que os Framers (criadores) não explicitaram o judicial review simplesmente porque “o tinham como certo” (American Constitutional Law, 2a ed., Nova Iorque: The Foundation Press, 1988, p. 26). No sistema norte-americano, a instauração e a evolução do “governo dos juízes” podem ser divididas em quatro períodos: 1º) de 1787 a 1830 – o Supremo Tribunal luta pelo reconhecimento de sua autoridade, remontando a essa época o célebre caso Marbury vs. Madison, de 1803; 2º) de 1830 a 1880 – a autoridade do Supremo Tribunal e dos demais tribunais, apesar de sedimentada, é exercida com moderação, somente sendo declarada a inconstitucionalidade de leis federais, no período de 1803 a 1870, em três ocasiões; c) de 1880 a 1936 – o Supremo Tribunal e os demais tribunais opõem as suas próprias convicções ao direito emanado do legislador, fazendo-as prevalecer, surgindo nesse período a célebre expressão “governo dos juízes”; e d) a partir de 1936 – o Supremo Tribunal e os demais tribunais costumam se pronunciar no mesmo sentido dos demais poderes políticos, sendo esse período inaugurado pela resistência de Roosevelt. Cf. Prélot e Boulouis, Institutions Politiques..., pp. 239/244.  

[40] Les Nouvelles Tendances du Droit Constitutionnel, Paris: Marcel Giard, 1931, p. 167.

[41] Cf. Guy Scoffoni, “Le Congrès des Etats-Unis et la Remise en Cause des Interprétations Constitutionnelles de la Cour Suprême: Sur la Conciliation entre Justice Contitutionnelle et Théorie Démocratique”, in RFDC nº 16, Paris: Presses Universitaires de France, 1994, p. 675 (675).

[42] Faro de Castro identifica focos de “partidarização” no Conseil Constitutionnel da França e no Bundesverfassungsgericht da Alemanha, isto em razão do critério de escolha de uma parte de seus membros, da alçada dos órgãos legislativos [“O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização da Política”, in RBCS vol. 12, nº 34, Junho/1997, p. 147 (149)].

[43] Cf. Antoine Garapon, O juiz e a democracia..., p. 180.

[44] Cf. Celso Fernandes Campilongo, Política, Sistema Judicial e Decisão Judicial, São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 57/63.

[45] Teoría..., p. 68. Na classificação tripartite de Loewenstein, o exercício do poder se manifestaria numa decisão política conformadora ou fundamental (policy determination), na execução da decisão (policy execution) e no controle político (policy control), sendo as duas últimas vertentes também da alçada do Judiciário (Teoría..., p. 62).

[46] Cf. Yann Aguila, Cinq questions sur l’interprétation constitutionnelle, in RFDC nº 21, p. 9 (9), 1995.

[47] No direito norte-americano, merece referência a political question doctrine (ou doctrine of nonjusticiability), que exclui da esfera de apreciação judicial questões essencialmente políticas e que não coloquem em risco a liberdade individual (v.g.: negócios estrangeiros e poder de declarar guerra, processo de emenda à Constituição, impeachment etc. - vide Baker vs. Carr, 369 U.S., 186). Cf. Nowak e Rotunda, Constitutional Law, St. Paul: West Publishing Co, 1995, pp. 106/117; e Tribe, American Constitutional..., pp. 96/107. No direito alemão, o Bundesverfassungsgericht tem reconhecido a impossibilidade de apreciar a conveniência e a adequação de uma lei, salvo quando for manifestamente inadequada ao cumprimento de sua finalidade (BVerfGE 30, 250, de 1971) ou ofender as decisões valorativas do constituinte (BVerfGE 4, 7, de 1954). Cf. Kimminich, “A jurisdição constitucional e o princípio da divisão de poderes”, trad. de Anke Schlimm e Gilmar Ferreira Mendes, in RILSF nº 105, Janeiro-Março/1990, p. 283 (298/299).

[48] As dificuldades na apreensão da realidade não passaram despercebidas a Tocqueville quando tratou do papel do Supremo Tribunal norte-americano: “seu poder é imenso, mas é um poder de opinião. Eles são onipotentes enquanto o povo aceitar obedecer à lei; nada podem quando ele a despreza. Ora, a força de opinião é a mais difícil de empregar, porque é impossível dizer exatamente onde estão os seus limites. Costuma-se ser tão perigoso ficar aquém deles quanto ultrapassá-los. Os juízes federais não devem ser apenas bons cidadãos (...) É necessário que saibam discernir o espírito de seu tempo (...)” (A Democracia na América (De La Democratie em Amérique), Livro I, trad. de Eduardo Brandão, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004, pp. 169/170).

[49] Cf. Sara MacDonald, Problems with Principles: Montesquieu’s Theory of Natural Justice, in HPT vol. XXIV, p. 109 (128), 2003.

[50] Cf. Cappelletti, Un Probleme Majeur..., p. 241; e Juízes Legisladores?..., p. 60.

[51] Cf. Gargarella, La justicia..., p. 99.

[52] Cf. Berti, Interpretrazione Costituzionale, Lezioni di Diritto Pubblico, 4ª ed., Verona: CEDA, 2001, p. 77.

[53] Nas palavras de Rui Barbosa: “a Constituição é acto da nação em attitude soberana de se constituir a si mesma. A lei é acto do legislador em attitude secundaria de executar a Constituição. A Constituição demarca os seus proprios poderes. A lei tem os seus poderes confinados pela Constituição. A Constituição é criatura do povo no exercício do poder constituinte. A lei, criatura do legislador como orgão da Constituição. A Constituição é o instrumento do mandato outorgado aos vários poderes do Estado. A lei, o uso do mandato constitucional por um dos poderes instituidos na Constituição” (Commentarios á Constituição Federal Brasileira, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1º vol., São Paulo: Saraiva & Cia., 1932, pp. 19/10).

[54] Cf. Gavison, What Belongs in a Constitution?, in CPL vol. 13, nº 1, Março/2002, p. 89 (90).

[55] Cf. Pascal Binczak, Le Conseil Constitutionnel et le droit d´amendment, in RFDC nº 47, p. 479 (508), 2001.

[56] Cf. Gargarella, La justicia..., p. 119. Nas palavras do autor, que bem demonstram o alcance da polêmica, “nossos oponentes terão de nos convencer, por exemplo, de que é desejável que juízes não eleitos pela cidadania, nem sujeitos a uma responsabilidade eleitoral imediata, sigam decidindo questões substantivas (por exemplo, decidindo como se regula o aborto, decidindo se é bom ou ruim consumir estupefacientes, distribuindo como se podem distribuir os recursos sociais e como não etc.). Nossos oponentes deverão nos dar razões para outorgar ao poder judicial a última palavra em matéria constitucional quando sabemos (particularmente na América Latina) o quanto a magistratura é permeável à pressão dos grupos de poder. Nossos oponentes deverão persuadir-nos de que a reflexão individual e isolada dos juízes nos garante a imparcialidade de um modo mais certeiro que a própria reflexão coletiva. Nossos oponentes terão que nos fazer entender que é desejável que o bom exercício judicial siga dependendo do azar de contar com ‘bons juízes’. Nossos oponentes deverão aclarar estas dúvidas a menos que – como tantas vezes – prefiram simplesmente negar-se ou impor as suas razões” (p. 265).

[57] A concepção de legitimidade está longe de ser uníssona. Savigny reconhecia a legitimidade na necessidade constante de interpretação das leis, operação intelectual que permitia a passagem das regras de direito para a realidade (Traité de Droit Romain, Tome Premier, trad. por M. Ch. Guenoux, Paris: Firmin Didot Frères, Libraires, Imprimeurs de L´Institut, 1840, pp. 202/203).

[58] Cf. Eros Roberto Grau, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, 5ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2003, pp. 85/87.

[59] Cf. Howard, op. cit., p. 188.

[60] O Liberalismo Político (Political Liberalism), trad. de Dinah de Abreu Azevedo, 2ª ed., 2ª imp., São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 284.

[61] Cf. Francis-Paul Benoit, Montesquieu inspirateur des Jacobins – La théorie de la “bonne démocratie”, in RDPSP nº 1, p. 5 (9/10). Sobre a defesa do judicial review nos planos democrático-representativo e democrático-deliberativo, vide Bianca Stamato, Jurisdição Constitucional, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.

[62] Cf. Bachof, Jueces y Constitución, trad. de Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano, Madrid: Editorial Civitas, 1985, p. 58. Segundo o autor, o próprio controle, ao reconhecer a atuação em harmonia com o direito, fortalecerá a autoridade dos demais poderes (p. 59).

[63] Encampando as palavras de Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, “a ‘Constituição justa’ pode ser utópica, mas, como muito bem observou Murgueza (La razón sin esperanza), quando uma utopia admite uma remota possibilidade de realização, o seu defeito não é ser uma utopia, mas precisamente o facto de não deixar de o ser” (Os Limites do Poder Constituinte e a Legitimidade Material da Constituição, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 219).

[64] The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics, 2ª ed., New Haven: Yale University, 1986.

[65] The Least Dangerous Branch…, pp. 17/19.

[66] The Least Dangerous Branch…, pp. 25/26.

[67] Gargarella, La justicia..., p. 60.

[68] A necessidade de se afastar julgamentos pessoais, nas palavras do Chief Justice Rehnquist, decorreria “da inexistência de um meio hábil pelo qual eu possa logicamente demonstrar a você que os julgamentos de minha consciência são superiores aos julgamentos de sua consciência, e vice versa” [“The Notion of Live Interpretation”, in American Constitutional Interpretation, org. por Murphy, Fleming and Barber, p. 248, apud Gary Jacobsohn, “Dramatic Jurisprudence”, in Constitutional Stupidities, Constitutional Tragedies, org. por William N. Eskridge Jr. e Sanford Levinson, New York: New York University Press, 1998, p. 172 (176)].

[69] Cf. Raoul Berger, Government by judiciary: the transformation of the fourteenth amendment, 2ª ed., Indianópolis: Liberty Fund, 1997, p. 460.

[70] Democracy and Distrust: a theory of judicial review, 11ª ed., Cambridge: Harvard University, 1995, pp. 1 e ss..

[71] Uma resenha da obra de Ely pode ser obtida em García de Enterría, La Constitución como Norma y el Tribunal Constitucional, 3ª ed., Madrid: Civitas Ediciones, 2001, pp. 210/221.

[72] Democracy and Distrust..., p. 43. Como observa Dworkin, esses padrões vagos (“vague standards”), apesar de serem escolhidos deliberadamente, causam uma grande onda de controvérsias políticas e legais, que podem assumir um lado “estrito” e outro “liberal” (v.g.: nos casos relacionados à segregação racial, o Supremo Tribunal norte-americano adotou uma postura liberal, enquanto os críticos permaneceram do lado estrito), conforme a interpretação permaneça, ou não, alheia a determinados valores morais que não possam ser facilmente reconduzidos ao texto constitucional e ao pensamento dos “fundadores” (Taking Rights Seriously, 17a imp., Massachussets: Harvard University Press, 1999, pp. 132/137).

[73] The Least Dangerous Branch…, pp. 236 e ss..

[74] Democracy and Distrust…, pp. 44/62.

[75] Democracy and Distrust…, pp. 63 e ss..

[76] Democracy and Distrust…, pp. 100 e ss.. Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, discorrendo sobre a justificação dos procedimentos de decisão judicial, observa que “a racionalidade procedimental da justiça só se legitima quando é capaz de institucionalizar mecanismos de permeabilização às reivindicações éticas que incluam: a) a democratização do procedimento pelo acesso à justiça mediante a participação equitativa dos sujeitos de direito; b) a discussão acerca da procura da verdade e sua busca recorrente nos institutos processuais; c) padrões de revisão e controle da racionalidade do processo” (Direito e Processo: Razão Burocrática e Acesso à Justiça, São Paulo: Max Limonad, 2002, p.189).

[77] “Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático”, trad. de Luiz Afonso Heck, in RDA no 217/66, 1999; “Balancing, constitutional review and representation”, in IJCL vol. 3, nº 4, p. 572 (578/581), 2005; e Teoria da Argumentação Jurídica (Theorie der Juristischen Argumentation), trad. de Zilda Hutchinson Schild Silva, São Paulo: Landy, 2001, pp. 211 e ss..

[78] Como observou Cristina Queiroz, “esse ‘direito dos juízes’ (Richterrecht) deriva a sua autoridade e nidependência do método cientifico da fundamentação” (Direitos Fundamentais (Teoria Geral), Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 130). Em outra passagem, observa a autora que, enquanto o legislador não está obrigado a respeitar o “princípio da coerência”, o juiz deve necessariamente decidir os casos que lhe sejam apresentados utilizando os “materiais jurídicos relevantes”, os quais podem ser desconsiderados pelo legislador caso considere que a sua opção é a melhor (op. cit., p. 291).

[79] Law’s Empire…, p. 244.

[80] Cristina Queiroz, Direitos Fundamentais..., p. 189.

[81] Jueces..., p. 59.

[82] No mesmo sentido: arts. 101 da Constituição italiana de 1947 e 138 da Constituição peruana de 1993.

[83] Cf. Berti, Interpretazione Costituzionale..., pp. 530/531.

[84] Requejo Pagés, Las normas preconstitucionales y el mito del poder constituyente, Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 1998, pp. 78, nota 4, 113, 116 e 128.

[85] O Congresso norte-americano, em inúmeras oportunidades, “passou por cima” (override) das decisões do Supremo Tribunal, podendo ser mencionados os seguintes exemplos: a) Décima Primeira Emenda, de 1798, que limitou a competência dos Tribunais Federais, destoando da decisão que a havia ampliado (Chisholm vs. Geórgia, de 1793); b) Décima Quarta Emenda, de 1868, que alterou o entendimento fixado pelo Tribunal no Caso Dread Scott vs. Sandford, de 1857, no qual se entendeu que os americanos descendentes de africanos, quer escravos, quer livres, não poderiam ser considerados cidadãos dos Estados Unidos; c) Décima Sexta Emenda, de 1913, que contornou a declaração de inconstitucionalidade do imposto sobre a renda, a menos fosse ele precedido de uma repartição entre os distintos Estados (Pollock vs. Farmer´s Loan and Trust Co., 158 U.S. 601, 1895); e d) Vigésima Sexta Emenda, de 1971, que fixou a idade comum de 18 anos para participar, como eleitor, das eleições da União e dos Estados, conferindo poderes regulamentares ao Congresso – com isto, foi contornado o entendimento adotado no Caso Oregon vs. Mitchell (400 U.S. 112, 1970), em que se reconheceu a impossibilidade de o Congresso fixar a idade de voto nas eleições dos Estados. Cf. Tribe, American..., pp. 50/51; e Scoffoni, Le Congrès..., in RFDC nº 16, 1994, p. 675 (682/685). No direito francês, pode ser mencionada a alteração dos arts. 3º e 4º da Constituição de 1958, promovida pela revisão de 08/07/1999, destinada a permitir a existência de cotas, de acordo com o sexo, para as candidaturas às eleições políticas. Com isto, contornou-se a decisão do Conselho, de 18/11/1982, que entendeu inconstitucional norma que consagrava cotas dessa natureza para a composição das listas eleitorais (Decisão nº 82-146, Recueil, p. 66, RJC, p. I-134, JO de 19/11/1982, p. 3475). Cf. Jean-Pierre Camby, Supra-constitutionnalité: la fin d’un mythe, in RDPSP nº 3, Maio-Junho/2003, p. 671 (685). Situação idêntica ocorre no direito brasileiro. Exemplo dessa possibilidade pode ser encontrado na Emenda Constitucional nº 20/1998, que, apesar de vedar a percepção simultânea de proventos de aposentadoria com a remuneração de cargo, emprego ou função pública - salvo os cargos cumuláveis na forma da Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração –, resguardou a situação daqueles ingressos no serviço público até a publicação da Emenda. Essa alteração contornou a interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 163.204-6, em 9 de Novembro de 1994, que somente permitia a acumulação de proventos e vencimentos em relação a cargos acumuláveis na atividade, alcançando todas as situações constituídas a partir de 1988, ano de promulgação da Constituição. Anotam Favoreu et alii que a prática é comum no direito austríaco (Droit Constitutionnel..., p. 317).

[86] Cf. Favoreu et alii, Droit Constitutionnel..., p. 77.

[87] Cf. Favoreu et alii, Droit Constitutionnel..., p. 77. Os autores assinalam que somente de forma excepcional é prevista a possibilidade de o Tribunal Constitucional produzir diretamente uma norma constitucional formal: é o caso do direito austríaco, em que o Tribunal Constitucional pode ser instado pelo Governo, federal ou estadual, a decidir se um projeto de lei diz respeito a um domínio de competência federal ou provincial. Decisão dessa natureza terminará por complementar as disposições constitucionais que regulam a distribuição de competências legislativas.

[88] Em 1938, o Supremo Tribunal norte-americano decidiu que os indígenas acusados da prática de crimes tinham o direito de serem assistidos por um Conselho situado ao nível dos tribunais federais (John vs. Zerbst, 304 U.S. 458, 1938). O Congresso, no entanto, somente em 1964, com o Criminal Justice Act, previu a designação ou o reembolso dos honorários dos conselheiros no âmbito dos processos federais. Também a proibição de alocação de recursos federais para a prática do aborto, limitando o exercício desse direito pelas mulheres de baixa renda, pode ser considerado um exemplo de esvaziamento dos efeitos de uma decisão do Supremo Tribunal. Nesse último caso, buscou-se diminuir o alcance da polêmica decisão proferida em Roe vs. Wade (410 U.S. 113, 1973), que permitiu a realização do aborto até certo período de gestação. Cf. Scoffoni, Le Congrès..., in RFDC nº 16, 1994, p. 675 (692/693).

[89] Cf. Scoffoni, Le Congrès..., in RFDC nº 16, 1994, p. 675 (679).

[90] O Legislativo pode utilizar, como “retaliação” às decisões do Tribunal Constitucional, o expediente de reduzir o seu orçamento, deixar de aprovar diplomas normativos voltados à ampliação do quadro de pessoal ou mesmo limitar os salários dos juízes. Exemplos dessa espécie podem ser colhidos no direito norte-americano. Em 1964, o Senado limitou a 2.500 dólares o aumento anual dos juízes da Suprema Corte, enquanto os demais juízes federais e membros do Congresso receberam 7.500. De acordo com o Senador John Tower, como o Tribunal decidiu legislar e mudar a Constituição, seus membros não deveriam receber um salário mais elevado que aquele dos legisladores (110 Congressional Records 15.844, 1964). Pouco depois, como reação à decisão proferida no caso Baker vs. Carr (369 U.S. 186, 1962), cogitou-se de reunir uma convenção constitucional encarregada de reformar a Constituição e de instituir um “Tribunal da União”, integrado pelos Chief Justices dos 50 Estados, com competência para reformar as decisões do Tribunal Supremo. Essa proposição, em 1967, obteve a aprovação de 32 Assembleias Legislativas estaduais, dentre as 34 necessárias, sendo posteriormente abandonada. Cf. Scoffoni, Le Congrès..., in RFDC nº 16, 1994, p. 675 (680/681).

[91] No Brasil, os Ministros do Supremo Tribunal Federal respondem pela prática de crimes de responsabilidade, que se enquadram numa tipologia de considerável amplitude: alterarem decisões já proferidas, proferirem julgamento quando suspeitos, serem desidiosos no cumprimento dos deveres do cargo e procederem de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções (art. 39 da Lei nº 1.079/1050). Como a acusação e o julgamento, de cunho político, são realizados pelo Senado Federal (art. 52, II, da Constituição de 1988), são evidentes os efeitos deletérios que o mau-uso desse instituto pode gerar. No direito norte americano, fonte inspiradora desse modelo, também os Justices da Suprema Corte estão sujeitos ao impeachment, sempre que incorrerem em traição, corrupção e outros graves crimes e delitos, sendo acusados pela Câmara dos Deputados e julgados pelo Senado (arts. I e II, Seção 4, da Constituição de 1787).  


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