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Publicidade institucional: a linha divisória entre o dever de informação e a promoção pessoal

Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. O princípio da impessoalidade e o seu potencial expansivo; 3. O princípio da publicidade e a publicidade institucional; 4. A publicidade institucional e a corruptela da promoção pessoal; Epílogo; Referências.

 

1. Aspectos introdutórios 

        A expressão publicidade institucional, aos menos em seus contornos semânticos, não oferece maiores dúvidas em relação ao seu sentido e potencial expansivo. A publicidade é a forma de tornar algo ou alguém conhecido por terceiros, podendo, ou não, ter a funcionalidade de criar um estado de ânimo favorável ao que é divulgado. Ao agregarmos à publicidade o qualificativo institucional, alcançamos a natural conclusão de que o conhecimento que se pretende oferecer está associado a uma instituição.

       O significante instituição, por sua vez, é nitidamente polissêmico. John Rawls (1997: 58), por exemplo, entendia como tal o “sistema público de regras que define cargos e posições com seus direitos e deveres, poderes e imunidades etc. Essas regras especificam certas formas de ação como permissíveis, outras como proibidas; criam também certas penalidades e defesas, e assim por diante, quando ocorrem violações. Como exemplo de instituições, ou, falando de forma mais geral, de práticas sociais, posso pensar em jogos e rituais, julgamentos e parlamentos, mercados e sistemas de propriedade”.

       Apesar da referência a um “sistema público de regras”, o que apontaria para uma concepção nitidamente jurídica, o renomado jusfilósofo faz alusão a um sistema mais amplo, encampando as práticas sociais. Sob esse prisma, de acentuado contorno sociológico, o conceito de instituição alcançará todas as formas de regulação presentes em determinado grupamento, ainda que não impostas pelo poder constituído: costumes, tradições, padrões morais, crenças etc. Sob uma perspectiva subjetiva, que direcionará nossa abordagem, entender-se-á por instituição a estrutura organizacional direcionada à consecução de determinados fins, que podem, ou não, coincidir com aqueles de natureza sociológica.

         Nossa análise terá por objeto uma espécie em particular de estrutura orgânica, que constantemente promove a publicidade institucional. Trata-se da Administração Pública, direta ou indireta, de todos os níveis da federação.

            O caput do art. 37 da Constituição de 1988 consagrou a publicidade, lado a lado com a legalidade, a moralidade, a impessoalidade e a eficiência, como um dos princípios regentes da Administração Pública. Essa publicidade, a exemplo de qualquer outra, pode ser concebida sob a perspectiva de algo, os atos da Administração Pública, ou de alguém, a Administração Pública em si. O que não se afigura ontologicamente possível é que a publicidade referida no comando constitucional, direcionada à Administração Pública, seja utilizada para amparar a publicidade dos atos de um particular ou do particular em si. Ocorre que, entre esses extremos, há situações em que a publicidade busca divulgar os atos da Administração Pública, além dela própria, mas, de modo correlato, também alcança a pessoa natural que, no exercício de uma função pública, tem ou almeja ter a sua imagem vinculada ao ato.

       A vinculação da pessoa natural ao ato termina por assumir singular relevância no contexto da publicidade institucional. Assim ocorre, em primeiro lugar, porque há custos envolvidos, que são suportados pela Administração Pública, daí decorrendo um imperativo ético de que terceiros não se beneficiem indiretamente, o que poderia fazer com que este último objetivo viesse a ser erigido à própria razão de ser da publicidade, que seria institucional apenas na aparência. Além disso, a publicidade institucional tende a apresentar grande penetração junto à coletividade, o que configura a sua própria ratio essendi. Caso esse estado de coisas reverta em benefício pessoal para o agente público, ter-se-á uma grave ruptura com a igualdade, máxime por estarmos inseridos em um regime democrático, no qual o nível de exposição nos meios de comunicação social e, em caráter crescente, na rede mundial de computadores (internet), tende a se refletir no resultado das eleições. É o que se verifica rotineiramente com a eleição de atletas profissionais, apresentadores etc.

            Para evitar deturpações na publicidade institucional, historicamente enraizadas na Administração Pública brasileira, o § 1º do art. 37 dispôs que “a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”. Ao definir a funcionalidade da publicidade institucional e vedar a sua realização com o objetivo de promoção pessoal de agentes públicos, a norma constitucional, além de enaltecer a impessoalidade, terminou por render homenagem aos demais princípios enunciados no caput do preceito. Afinal, estabeleceu um permissivo e delimitou o seu alcance, em nítida reverência à legalidade (constitucional); manteve-se adstrita à base de valores que alimenta a moralidade administrativa; detalhou a funcionalidade da publicidade; e zelou pelo correto emprego dos recursos públicos, considerando os fins a que se destinam as ações estatais, andando de braços dados com a eficiência.

      O objetivo de nossas breves reflexões é o de analisar a funcionalidade da concepção de impessoalidade e sua interação com a publicidade institucional, o que se mostra indispensável à identificação do potencial expansivo da parte final do § 1º do art. 37, que considera ilícitas as ações destinadas à promoção pessoal. Essa análise deve ser sensível à constatação de que a primeira parte do preceito, ao reconhecer a juridicidade da publicidade institucional e definir os seus fins, termina por instrumentalizar o direito à informação, de vital importância em ambientes democráticos.

2. O princípio da impessoalidade e o seu potencial expansivo

           Como já tivemos oportunidade de afirmar (2017: 110-112), impessoal, para o léxico, é o que não diz respeito a uma pessoa em especial. Essa concepção, no plano administrativo, pode ser direcionada tanto à Administração Pública como aos administrados em geral, assumindo uma perspectiva dúplice. No primeiro sentido, estatui que o autor dos atos estatais é o órgão ou a entidade, e não a pessoa do agente público (acepção ativa). Tanto as realizações propriamente ditas como a publicidade dos respectivos atos devem ser atribuídos ao ente legitimado à sua prática, não aos recursos humanos que viabilizaram a sua concretização. Sob outra ótica, o princípio torna cogente que a Administração dispense igualdade de tratamento a todos aqueles que se encontrem em posição similar, exigindo que os atos praticados produzam os mesmos efeitos e atinjam a todos os administrados que estejam em idêntica situação fática ou jurídica. Esse modus operandi caracteriza a imparcialidade[1] do agente público (acepção passiva). Presente a concorrência ou o conflito de interesses entre particulares, as especificidades e qualidades pessoais de cada um dos envolvidos somente devem influir no correto delineamento dos aspectos objetivos subjacentes ao caso, não na formação de preconceitos que culminem na desconsideração da ordem jurídica e do bem comum (Cf. Jorge Miranda, 2000: 246). Para que a imparcialidade seja assegurada, de modo que tanto a deontologia administrativa como as garantias individuais sejam respeitadas, deve o agente público deixar de atuar sempre que configurada uma hipótese de impedimento ou suspeição. As relações pessoais, na medida em que possam afetar a objetividade da atuação do agente, exigem a sua abstenção, assegurando a imparcialidade da Administração (Cf. Jesús González Peerez, 2000: 96-97).

           Ainda em torno da impessoalidade, vale lembrar a lição de Cícero (2001: 56): “quem quiser governar deve analisar estas duas regras de Platão: uma, ter em vista apenas o bem público, sem se preocupar com a sua situação pessoal; outra, estender suas preocupações do mesmo modo a todo o Estado, não negligenciando uma parte para atender à outra. Porque quem governa a República é tutor que deve zelar pelo bem de seu pupilo e não o seu: aquele que protege só uma parte dos cidadãos, sem se preocupar com os outros, introduz no Estado o mais maléfico dos flagelos, a desavença e a revolta”.

            Com isto, preserva-se o princípio da isonomia entre os administrados e a própria teleologia da atividade administrativa, que aponta para a necessidade de a atividade estatal ter sempre por objetivo a satisfação do interesse público, sendo vedada a prática de atos discriminatórios que busquem unicamente a implementação de um interesse particular.

               Em sua pureza conceitual, o atuar do Estado deve sempre estar comprometido com a realização do bem comum, concepção que não se harmoniza com as deturpações que o subjetivismo e a parcialidade trazem consigo. É nesse contexto que se insere o princípio da impessoalidade. O atuar impessoal indica a sua desvinculação de (1) sujeito, (2) destinatário ou (3) valor que, de algum modo, possa comprometer a conexão direta que deve existir entre Estado e bem comum.

                Da mesma maneira que é inconcebível a individualização de uma norma de conduta à margem da ordem de valores extraída do ambiente sociopolítico, não se pode conceber um Estado que não seja direcionado por certos valores (v.g.: liberdade econômica ou planificação da economia; laicidade ou proselitismo religioso; excepcionalidade, ou não, dos direitos sociais, como saúde e educação etc.). Esses valores, como não poderia deixar de ser, serão absorvidos e filtrados pela ordem constitucional. Em Estados pluralistas, como a República Federativa do Brasil, em que prevalecem a igualdade e o império da lei, não é possível que o atuar do Estado seja direcionado por valores específicos, colhidos unicamente no imaginário do agente público que materializa a sua atuação.

                A respeito da impessoalidade no plano dos valores, assim se manifestou Rui Barbosa (1964: 32): “[q]ue é, de feito, o Estado? Um sistema, uma escola, uma opinião, uma filosofia, um culto, uma verdade? Não, sem dúvida nenhuma. O Estado é apenas a organização legal das garantias de paz comum e mútuo respeito entre as várias crenças, convicções e tendências que disputam, pela propaganda persuasiva, o domínio do mundo. A verdade científica, a verdade moral, a verdade religiosa estão fora da sua competência. É na região superior do espírito, é na esfera livre das consciências que elas se debatem, caem, ou triunfam. Transpondo esse termo, exorbitando do círculo onde se lhe encerram as altas prerrogativas de representante da grande personalidade nacional perante as outras e protector do indivíduo na sua tranquilidade, na sua propriedade, na sua liberdade, excedendo esses limites, já o Estado não é mais essa eminente abstracção moral, armada dos recursos da força colectiva, por interesse de todos, em apoio do direito de cada um; desaparece-lhe esse carácter impessoal, que constitui a sua eminência e a sua legitimidade, para deixar em relevo, descoberto, nu, em todo o odioso das paixões pessoais, ou do espírito de parcialidade que o anima, o grupo, mais ou menos numeroso, dos homens que governam”.

                O princípio da impessoalidade, em sua acepção ativa, ao atribuir ao órgão ou à entidade a autoria dos atos praticados pelo agente público, exige reflexões suplementares em relação aos alicerces estruturais de sua responsabilidade pessoal. Afinal, se o ato é fisicamente despersonalizado, figurando o agente público como mero instrumento de concretização, como justificar que possam recair sobre ele efeitos jurídicos negativos decorrentes de algo que a ele não é imputado?

              A solução, à evidência, está nitidamente associada ao referencial de juridicidade. Em outras palavras, a atuação do agente público somente é amparada pelo direito, incluindo o princípio da impessoalidade, enquanto adstrito a ele. Assim, tanto ao desempenhar as atividades próprias do seu ofício, interagindo com o administrado, como ao observar uma dada diretriz comportamental decorrente do vínculo jurídico que mantém com a Administração (rectius: o regime jurídico da categoria), o agente deve ser dirigido por um padrão de juridicidade.

               Ao romper com o dever jurídico subjacente ao seu status funcional, o agente passa a ser regido por uma sistemática legal cuja incidência é deflagrada com a prática do ato ilícito, daí surgindo um novo dever jurídico, que pode consistir na imperativa reparação do dano causado ou na sujeição a uma medida punitiva de natureza penal, cível, política ou administrativa. É importante ressaltar, no entanto, que o primeiro dever jurídico, decorrente do status funcional, também absorve a norma proibitiva implícita em todo comando normativo cujo preceito secundário imponha uma consequência negativa ao agente: a tipificação penal da corrupção, por exemplo, faz surgir o dever jurídico de o agente público não se corromper. Nessa linha, o primeiro dever jurídico encontra-se embasado em normas prescritivas e proibitivas, enquanto o segundo assume contornos nitidamente consequenciais, decorrendo da inobservância do primeiro. A inobservância do primeiro é condictio sine qua non ao surgimento do segundo.

               A existência de uma “face oculta” da Administração somente é concebível na medida em que, atuando em harmonia com a ordem jurídica, realize o bem comum. Dele se distanciando, as “feições administrativas” têm seus contornos delineados, afastando o referencial de impessoalidade. Como acentuou Kelsen (1998: 376), “um indivíduo atua como órgão do Estado apenas na medida em que atua baseado na autorização conferida por alguma norma válida”.

3. O princípio da publicidade e a publicidade institucional

            O Estado Democrático de Direito, por imperativo conceitual, é prosélito da transparência e infenso ao segredo. Com as novas luzes oriundas da redemocratização do País, não é dado à Administração Pública, direta ou indireta, de todos os poderes e níveis da federação, desconsiderar essa diretriz normativa, sintetizada no princípio da publicidade. Apesar de expressamente previsto no art. 37, caput, da Constituição de 1988, o princípio está naturalmente implícito na própria ideia de democracia. Quer para restringir, quer para atribuir direitos, o atuar dos poderes constituídos deve se desenvolver à luz do dia, não podendo ser eclipsado, um milímetro sequer, pelas sombras passíveis de advir tanto da desorganização administrativa como de objetivos menos nobres, direcionados ao encobrimento dos ilícitos praticados.

                A compreensão do papel da publicidade no âmbito dos atos praticados pelas estruturas estatais de poder exige algumas reflexões em torno do conceito de eficácia, que reflete a aptidão do ato para produzir os seus efeitos na realidade. A doutrina alemã distingue duas espécies de eficácia, a interna (innere Wirksamkeit) e a externa (äussere Wirksamkeit): a primeira representa a fase constitutiva, na qual o ato administrativo forma uma unidade existencial e estabelece obrigações, e a segunda, pressuposto de sua executoriedade, o torna uma realidade jurídica que deve ser considerada. Sobre a eficácia jurídica do ato administrativo (Rechtswidrigkeit des Verwaltungsakt), vide Hartmut Maurer, 2009: 252 e ss..

            A publicação do ato instrumentaliza a eficácia externa. Ainda que se reconheça que a eficácia interna, entre nós, seja objeto de análise sob o prisma da validade, ou mesmo que o atos que produzirão efeitos em momento distinto ao da publicação façam com que a eficácia externa se integre ao conteúdo material do ato, não se pode negar, sob o prisma da teoria das nulidades, ser perfeitamente possível que um ato nulo seja externamente eficaz, o que pressupõe apenas a sua publicação. Embora seja correta a fórmula civilista, no sentido de que quod nullum est, nullum parit effectum, adotada pela generalidade dos ordenamentos jurídicos, a exemplo do alemão (VwVfG, § 43/3: ein nichtiger Verwaltungsakt ist unwirksam), não se pode negar que esses efeitos continuam assombrando a realidade enquanto a nulidade não seja reconhecida no âmbito administrativo ou por um órgão de controle. No extremo oposto, também é possível que a eficácia interna (ou validade, como preferimos) esteja presente, mas não a sua eficácia externa, o que pode decorrer de vícios da publicação.

            A teoria das nulidades evidencia que a publicação, longe de integrar o ato administrativo, consubstancia um segundo ato administrativo, cuja falta ou nulidade compromete a eficácia jurídica externa do primeiro ato. A publicação é ato acessório, inapta para alterar o ato principal, devendo limitar-se à sua veiculação. Para maior desenvolvimento, vide as reflexões de Luís Filipe Colaço Antunes, 2016: 359-382 e 391-420.

                 Com exceção das hipóteses expressas na Constituição, todos os atos do Poder Público devem ser levados ao conhecimento externo, permitindo sua fiscalização pelo povo e pelos demais legitimados para o seu controle. Caso inexistisse transparência, não seria passível de aferição a necessária adequação que deve existir entre os atos estatais e a consecução do interesse público, razão de ser do próprio Estado[2]. Tal culminaria em impedir que os interessados zelassem por seus direitos. Afinal, se não conhecem os motivos que embasaram o agir da Administração, tornar-se-ia tarefa assaz difícil impugná-los, o que torna obrigatória a publicização dos substratos fáticos e jurídicos que motivaram a conduta.

            A publicidade há de ser ampla, sendo ilícitas as omissões ou incorreções eventualmente detectadas. O princípio, ademais, é de observância obrigatória por todos os entes da administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes e de todas as esferas da Federação.

                Apesar da identidade de ordem semântica, a publicidade a que se refere o caput do art. 37, enquanto requisito de eficácia externa do ato praticado, não se identifica com a publicidade referida no § 1º do mesmo preceito. Esta última, como se constata pelo teor do comando constitucional, deve ter fins específicos, que se mostram disjuntivos e concorrentes e não se relacionam propriamente à integração de eficácia do ato. Esses fins são a promoção da educação, a informação ou a orientação social.

                  O substantivo educação, do latim educatio, educationis, indica a ação de criar, de alimentar, de gerar um arcabouço cultural. A educação, longe de ser um adorno ou o resultado de uma frívola vaidade, possibilita o pleno desenvolvimento da personalidade humana e é um requisito indispensável à concreção da própria cidadania. Com ela, o indivíduo compreende o alcance de suas liberdades, a forma de exercício de seus direitos e a importância de seus deveres, permitindo a sua integração em uma democracia efetivamente participativa. Em essência, “educação é o passaporte para a cidadania”. Cf. Emerson Garcia, 2006: 83 e ss; e Idem, 2009: 55 e ss.. É o primeiro veículo para que pessoas econômica e socialmente excluídas possam deixar a zona de pobreza e participar de sua comunidade (Jayawickrama, 2002: 894). Não é por outra razão que Jan Tinbergen, o primeiro Nobel de Economia, na polêmica com António José Avelãs Júnior (2018: 32), afirmava que educar é passar da situação de não qualificado para a de qualificado, o que possibilita a obtenção de posição e salário mais elevados. Na medida em que o número de qualificados cresce, característica dos países desenvolvidos, o mercado torna-se mais receptível aos não qualificados, cuja posição vê-se reforçada “no jogo da oferta e da procura”. Trata-se de pressuposto necessário à evolução de qualquer Estado de Direito, pois a qualificação para o trabalho e a capacidade crítica dos indivíduos mostram-se imprescindíveis ao alcance desse objetivo. “A instrução do povo”, como afirmou Rui Barbosa (1964: 66), “ao mesmo tempo que o civiliza e o melhora, tem especialmente em mira habilitá-lo a se governar a si mesmo”.

               A informação nada mais é que a veiculação de dados da realidade por meio da linguagem. Com ela, busca-se ampliar o universo de autonomia individual na formação de preferências e opiniões, sendo uma forma de manifestação do próprio princípio democrático, pois a ideologia participativa é diretamente influenciada pelo conhecimento da realidade e pela capacidade crítica dos cidadãos (Jónathas E. M. Machado, 2002: 475-476). Acresça-se que somente será possível obter a informação em sendo assegurada a correlata liberdade de informar, indicativo de que devem ser permitidos a existência e o funcionamento dos meios de comunicação social. Com isso, a opinião pública se desenvolverá sobre bases sólidas, estimulando o desenvolvimento da ideologia participativa e a sedimentação do princípio democrático: “a liberdade de informação é pressuposto da publicidade democrática” (Konrad Hesse, 1998: 305). A liberdade de imprensa, como manifestação da liberdade de informar, é uma ideia correlata à própria soberania popular, que instrumentaliza em prol da democracia (Tocqueville, Livro I, 2001: 207 e ss.).

            Por fim, a orientação social é uma forma de transmitir a informação com o objetivo de direcionar comportamentos. Como se constata pelos contornos semânticos da expressão, a orientação deve ser direcionada à sociedade, ainda que não se mostre relevante a todos os seus membros. Além disso, há de existir um liame, uma relação de coerência lógica entre a orientação e os seus destinatários, vale dizer, aos membros de uma sociedade em particular. A ausência desse liame romperá a funcionalidade da orientação e o possível enquadramento da conduta no permissivo do art. 37, § 1º.

            Dos três fins específicos a que se presta a publicidade institucional, o que mais se presta a abusos é a informação. Enquanto a promoção da educação e a orientação social nada mais são que o fornecimento de informações para a realização de objetivos previamente definidos, o que aumenta o nível de sindicabilidade judicial, a informação, concebida em sua individualidade, nada mais é que um dado da realidade, a ser ofertado ao administrado, para que forme os seus juízos de valor e utilize-os da forma que melhor lhe aprouver. Essa constatação, devidamente amparada pela ordem constitucional, poderia permitir que a publicidade institucional tivesse qualquer conteúdo. Isto, no entanto, não pode ocorrer em razão da necessidade de que observe as demais normas constitucionais, com realce para aquelas de estrutura principiológica que inauguram o art. 37, e as vedações inseridas na parte final do § 1º, a exemplo, aliás, do que se verifica com a promoção da educação e a orientação social.

 4. A publicidade institucional e a corruptela da promoção pessoal

               A publicidade institucional, como se disse, está sujeita a duas grandes ordens de balizamentos.

          A primeira aglutina os balizamentos oferecidos pelas demais normas do sistema, que trazem consigo comandos implícitos que vedam a prática de atos que deles destoem, salvo se, em se tratando de normas de estrutura principiológica, a sua aplicação venha a ser preterida por outra norma que tenha maior peso no caso concreto. Não é por outra razão que a publicidade institucional deve ser relacionada à Administração Pública, encontrar amparo na lei orçamentária e ser contratada com estrita observância da legislação de regência, normalmente com a prévia realização de licitação (princípio da legalidade); não pode privilegiar uma pessoa em particular, ainda que não seja agente público (princípio da impessoalidade); deve estar em harmonia com a base de valores subjacente à Administração Pública, encontrada a partir da abstração do referencial mais amplo de juridicidade, o que veda que a publicidade institucional seja veiculada sem render estrita homenagem ao interesse público ou com a ruptura dos padrões éticos esperados do agente público (princípio da moralidade); e deve buscar realizar os fins a que se destina com o menor dispêndio possível dos recursos materiais e humanos disponíveis (princípio da eficiência).

            Com os olhos voltados a essa primeira ordem de balizamentos, é perceptível a sua total incompatibilidade com a utilização da publicidade institucional para a promoção pessoal do agente público, o que foi objeto de vedação expressa na parte final do § 1º do art. 37. De acordo com essa preceito, da publicidade não podem “constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”. A forma como estes dois últimos significantes foi empregada denota que autoridade é o agente que ocupa o ápice do escalonamento hierárquico, enquanto servidor público é aquele sujeito ao princípio hierárquico, com capacidade decisória mitigada.

            Nomes, símbolos ou imagens, objeto de vedação no comando constitucional, têm por objetivo individualizar pessoa em particular, o que pode ocorrer de modo direto, quando esse vinculo é reconhecido prima facie, ou de modo indireto, ocasião em que o vínculo é inicialmente estabelecido com terceira pessoa, com a qual o agente mantém estreitas relações, a exemplo do que se verifica nas relações entre o Chefe do Poder Executivo e o seu partido político.

            Nome é um designativo que permite a individualização de pessoa ou objeto, distinguindo-o dos demais da mesma espécie. O símbolo, por sua vez, apresenta contornos multifacetários, podendo ser descrito como qualquer forma de representação do intelecto humano que permita a sua associação a pessoa ou objeto, contribuindo para individualizá-lo e para criar uma memória de sua existência: varia desde uma singela letra ou número, até alcançar níveis maiores de sofisticação, como desenhos ou imagens de objetos ou animais, personagens históricos, pensamentos, slogans etc.). Por fim, a imagem é uma forma de espelhar a realidade, no que depende da visão dos interlocutores para a apreeensão do seu sentido, se distinguindo ainda dos símbolos, mesmo quando empreguem imagens, os quais buscam apenas lembrar a realidade, não propriamente espelhá-la.

            Ocorre que, na sistemática constitucional, a só menção a nomes, símbolos ou imagens que permitam a individualização de autoridades ou servidores públicos não é suficiente para caracterizar a ilicitude da publicidade institucional. A divulgação do teor de um decreto, assinado pelo Chefe do Poder Executivo, não pode ser considerada uma forma de promoção pessoal, o mesmo podendo ser dito em relação a uma placa de inauguração de um prédio público, que caracteriza informação de importância histórica. É preciso um plus, vale dizer, que, pela forma como a publicidade foi estruturada, reste caracterizada a promoção pessoal da pessoa retratada ou lembrada.

            A caracterização da promoção pessoal será delineada conforme dois critérios básicos: o estrutural e o da preponderância do interesse.

            O critério estrutural indica que a publicidade institucional é organizada e veiculada de modo a se tornar permeável aos aspectos que individualizam determinada pessoa. Esses aspectos, que seriam meramente acidentais, considerando o objeto da publicidade, terminam por ter sua relevância potencializada, o que decorre não só de sua associação à informação propriamente institucional, prática suficiente para agregar valor a uma pessoa concebida em sua individualidade, como também do relevo que recebe. Em alguns casos, a valorização do gestor pode ser o objeto o único e exclusivo da dita publicidade institucional, a exemplo da veiculação de um outdoor com a sua imagem, associando-o à estrutura de poder com a qual mantém vínculo functional, embora essa hipótese, grotesta que é, não seja vista com frequência em razão de sua manifesta injuridicidade.

            O critério da preponderância do interesse pode ser, ou não, uma decorrência lógica do critério estrutural. Teremos uma implicação recíproca entre ambos quando o emprego de nomes, símbolos ou imagens assumir tamanha proporção que denotar ter sido este o verdadeiro objetivo da publicidade, ainda que não o único. Além do exemplo já mencionado, é o que tende a ocorrer em informes publicitários, veiculados em impressos ou em qualquer meio de comunicação social, nos quais há grande exploração da figura do gestor, buscando vinculá-lo pessoalmente a aspectos positivos da Administração Pública.

            A preponderância do interesse também pode ser identificada a partir de circunstâncias periféricas à publicidade institucional, estranhas aos seus contornos estruturais. É o que ocorre quando circunstâncias, de tempo, lugar e modo de veiculação potencializarem os benefícios pessoais passíveis de serem auferidos pela autoridade ou pelo servidor referido na publicidade institucional. Esse aspecto torna-se bem nítido quando a propaganda institucional é incrementada no ano em que será realizada uma eleição na qual o agente concorrerá. Não é por outra razão que o art. 73, VI, b, da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições) proibe aos agentes públicos a prática de conduta que afete a igualdade de oportunidades entre os candidados, assim considerada, nos três meses anteriores ao pleito, “com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado, autorizar publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral”.

            Tanto o critério estrutural como o da preponderância do interesse, aos olhos de um expectador, têm a sua compreensão facilitada quando, de modo correlato à veiculação de nome, símbolo ou imagem, a publicidade institucional assumir contornos valorativos, não propriamente neutrais. Tal ocorrerá quando a informação que se pretende associar à pessoa do agente for descrita de modo elogioso, não raro a partir de juízo comparativo com realizações alheias, quer em uma perspectiva histórica, quer atual.

Epílogo

                Na realidade brasileira, um dos grandes desafios da contemporaneidade é a exata compreensão da funcionalidade da publicidade institucional, conforme o permissivo inserido na primeira parte do § 1º do art. 37 da Constituição de 1988 e as vedações constantes da 2ª parte do preceito.

           Além dos constantes desvios éticos praticados por inúmeros gestores, que estruturam a publicidade institucional de modo a direcioná-la à promoção pessoal, além de ser este o interesse predominante em inúmeras ocasiões, há um outro fator que há de ocupar as discussões em torno dessa temática, qual seja, a sua verdadeira relevância para a coletividade. Este último aspecto, em termos de pureza conceitual, tende a ser potencializado em se tratando de promoção da educação ou orientação social, sendo minimizado, no extremo oposto, quando assumir contornos meramente informativos.

            Afinal, destinando-se apenas a informar, a publicidade institucional pode ser utilizada para veicular um grande universo de informações, o que aumenta a liberdade valorativa do agente que decide veiculá-las, sendo movido, em certos ocasiões, pelo interesse em aproveitar-se do ato para a sua promoção pessoal.

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Notas

[1]    A Constituição italiana, em seu art. 97, refere-se ao bom andamento e à imparcialidade da administração: “I publici uffici sono organizzati secondo disposizioni di legge, in modo chi sono assicurati il buon andamento e l’imparzialità dell’Amministrazione”. Norma semelhante é contemplada no art. 226 da Constituição portuguesa de 1976: “(...) 2. Os órgãos e agentes da administração estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade”.

[2]    A publicidade dos atos administrativos decorre da Constituição, somente podendo ser excepcionada nas hipóteses em que “o sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado’’ (art. 5º, XXXIII). O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do MI n. 284-DF, sendo relator designado o Ministro Celso de Mello, sensível à nova realidade do País, assentou que “alguns dos muitos abusos cometidos pelo regime de exceção instituído no Brasil em 1964 traduziram-se, dentre os vários atos de arbítrio puro que o caracterizaram, na concepção e formulação teórica de um sistema claramente inconveniente com a prática das liberdades públicas... ao privilegiar e cultivar o sigilo, transformando-o em praxis governamental institucionalizada, frontalmente ofendeu o princípio democrático, pois, consoante adverte Norberto Bobbio, em lição magistral sobre o tema (O Futuro da Democracia, 1986, Paz e Terra), não há, nos moldes políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério. O novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucionalmente assegurado, disciplinando-o com expressa ressalva para as situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais. A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou na lição expressiva de Bobbio, como ‘um modelo ideal do governo público em público’” (Pleno, j. em 22/11/1991, RTJ 139/713).


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